domingo, 23 de junho de 2013

Há quase um ano sozinho, na antiga vida de solteirão. Tem sido duro, mas útil. De vez em quando faz-me bem estar só e desamparado. É nessas horas que sinto mais profundamente a significação de uma mulher ao lado do artista. A história literária exibe prodigamente o cenário feminino e mundano que aconchega os criadores e lhes embeleza a vida. Mas diz-nos pouco das companheiras quotidianas, domésticas e anónimas, a verem nascer a obra, a aquecê-la com chávenas de chá, e a renunciarem à alegria de a conhecer na emoção virginal de um leitor apanhado de surpresa. E nada de mais significativo e decisivo do que essa ajuda e do que essa renúncia. As Récamiers são o estímulo de fora, higiénico e lisonjeiro; enquanto que as outras, íntimas e apagadas, empurram o carro trôpego da criação debaixo de todos os ventos, e sem aplausos no fim. O seu lema é a aceitação calma e confiante dos desânimos, dos rascunhos, das mil tentativas falhadas. E quando a obra, finalmente acabada, empolga o público, já tem atrás de si um tal cansaço, uma tal soma de horas desesperadas, que só com um grande amor a podem ainda olhar. 
Por esse amor não existir, é que a mulher de Tolstoi disse a conhecida barbaridade: «Vivi quarenta e oito anos com Lev Nicolaievitch sem chegar nunca a saber que homem ele era». De qualquer maneira, estou só, e sinto-me em penitência. Considero-me a cumprir a pena de usufruir um bem anos a fio, e só de vez em quando ter consciência dele. 

Miguel Torga, in Diário (1947)



Da tristeza não chegaram a vir palavras, só turbulência. Uma tormenta inexplicável e avassaladora que levou tudo à frente, mas não deixou palavra alguma pelo caminho. Lágrimas tão pouco. Sossegadas as águas, calados os ventos, e adormecidas as tempestades, só assim vieram as letras, juntarem-se devagarinho umas às outras, a atirarem cá para fora tudo o que não se podia calar. Porque quando dos sentimentos se faz um campo minado, a cada segundo rebentam bombas, umas atrás das outras, impiedosas e exigentes. E nos sentimentos ninguém tem mão. 

quinta-feira, 20 de junho de 2013

photo @ Ana Zahner 2013


Houve aquele dia do jardim zoológico. Uma viagem no tempo feita a cinco, menos para um de nós, mais pequeno e sem um passado distante que já o tivesse levado ao jardim zoológico noutra vida. Pisar um chão cheio de passados nossos e de outros, memórias esbranquiçadas flutuantes que voam de Lisboa até à costa Oeste. O dia começa com um arco-iris, elefantes, suricatas, serpentes, crocodilos, leões e leoas. As mães sempre a protegerem os filhos, em todas as espécies, tamanhos feitios. Sobrevoamos o jardim dentro das nossas jaulinhas metálicas, sempre à espera de cair chão abaixo a cada virada, a cada curva. Reminiscências que ficaram do dia em que apanhei o primeiro avião pela primeira vez. Porque foi nesse dia que abriu o caminho de ferro aéreo que puseram em cima do Jardim Zoológico. Nesse dia, havia um futuro por cumprir, uma vida por preencher, corações em sintonia, almas ao alto em uníssono.

Tudo se esfumou.

Ámen.

terça-feira, 18 de junho de 2013

photo @ Cláudia Rocha 2011
Abro a janela, vidros duplos, portadas brancas, varandinha para os vasos. Anoiteceu e ao fundo acende-se a 25 de Abril e o Cristo sempre de braços abertos. A rua é tosca mesmo, chama-se Heliodoro Salgado, nome de jornalista que nunca nenhum operador de call-center, nem nunca nenhum funcionário de FNAC alguma, nem nunca nenhum trabalhador do Continente entende ou sabe como se escreve. E as cartas, os vales de desconto e todas as outras promoções sempre passeiam por outras ruas antes de chegar à minha, desrespeitosamente dirigidas à rua Eliodro Salgado, Elidoro Salgado, Hélidoro Salgado, em total desconhecimento da existência da rua ou da pessoa que lhe deu o nome.

Fecho a janela apenas a tempo de conferir se o carro não está a impedir a passagem do 28, ou se a Polícia Municipal ainda não o levou. A Ana, a brasileira de olhos redondos do Piauí que chegou cá em Novembro, acha que os portugueses são bonitos, até os polícias!, dizia ela entusiasmada há pouco enquanto fugíamos ao frio no Príncipe Real – isso é porque não conheces os barrigudos de bigode que proliferam no interior. Menos o Rodrigues, que é pai da Paula, não é barrigudo nem tem bigode, e é das pessoas mais engraçadas de se conhecer.

Os segundos em que a janela ficou aberta, em que checkei o meu carro, em que pensei na Ana e nos polícias e nos bigodes e no Rodrigues, foram suficientes para ver as três miúdas no meio da estrada, duas em pose, a terceira de máquina em punho. Seria digital ou automática? Mas é, a rua é tosca mesmo, e às vezes chama-se Eliodro Salgado, outras vezes Elidoro Salgado, e outras Hélidoro Salgado, muito raramente dá pelo nome de Heliodoro Salgado. Mas mesmo no escuro e apesar do nome estranho e impronunciável para a maioria das pessoas, duas miúdas quiseram pousar no meio da estrada, do breu e dos carros para a outra as fotografar. Seria digital ou automática?

O indiano dos olhos amarelos da loja em frente (uma das quinze lojas de indianos num raio de 500 metros) olha imerso para as miúdas. Ou também questiona o intuito da foto, ou aprecia-lhes os corpos tenros e carnudos dos dezoito anos que aparentam. Lembro-me do dia em que eu e a Paula ficámos penduradas na varanda a ver o indiano dos olhos amarelos a ser levado pelo INEM, e nunca chegámos a saber o que lhe deu nesse dia. Mas nesse dia os olhos amarelaram-se-lhe mais do que nos outros dias, e meio desmaiado acabou por ser levado numa ambulância também ela amarela.


O meu carro ainda lá está afinal, não foi abalroado pelo eléctrico nem levado pelos senhores da polícia - são bonitos, não?

segunda-feira, 17 de junho de 2013

photo @ Cláudia Rocha 2012


Este ano, não fizemos praia antes de montarem as barracas na praia, um amigo reparava um dia destes. Pelo menos, não naquela que é a nossa praia. Na minha cabeça soou uma campainha, evidenciando as diferenças colossais deste ano para o anterior, para o outro atrás, e para os outros ainda mais antigos. A vida tem este condão de nos tirar o chão debaixo dos pés, desmontar todas as peças e voltar a juntá-las, sem que nada possamos fazer. Planear é bom, mas alguma vez chega a servir algum propósito, onde é que nos leva, o que é que nos garante? 

Se há coisa que aprendi mesmo sem querer, foi a não dar nada como garantido. Assim, pode ser que os dissabores não provoquem tanta surpresa quando acontecem.

Este ano, não fizemos praia antes de montarem as barracas na praia. Quem nos garante que no próximo ano vamos sequer ter areia suficiente para fazer praia...?

terça-feira, 11 de junho de 2013



Palavras para a Minha Mãe



mãe, tenho pena. esperei sempre que entendesses 

as palavras que nunca disse e os gestos que nunca fiz. 
sei hoje que apenas esperei, mãe, e esperar não é suficiente. 

pelas palavras que nunca disse, pelos gestos que me pediste 
tanto e eu nunca fui capaz de fazer, quero pedir-te 
desculpa, mãe, e sei que pedir desculpa não é suficiente. 

às vezes, quero dizer-te tantas coisas que não consigo, 
a fotografia em que estou ao teu colo é a fotografia 
mais bonita que tenho, gosto de quando estás feliz. 

lê isto: mãe, amo-te. 

eu sei e tu sabes que poderei sempre fingir que não 
escrevi estas palavras, sim, mãe, hei-de fingir que 
não escrevi estas palavras, e tu hás-de fingir que não 
as leste, somos assim, mãe, mas eu sei e tu sabes. 

José Luís Peixoto, in "A Casa, a Escuridão"



Hoje ela fazia anos. Já não sei quantos, aos poucos fui deixando de fazer contas aos números que fazem doer. Palavras são as de outrem,  que a saudade tem o condão de ir dia após dia asfixiando o tanto que ficou por dizer.


Afinal foram seis. Seis redondos anos. Dois mil, cento e noventa dias a tentar perceber como chegar a algum lado sem deixar o vazio e a impotência meterem-se pelo caminho. Hão-de haver sempre dias diferentes, dias em que a resiliência não vai querer sair da cama, por muito que eu puxe por ela. 



E dias hão-de haver, mãe, em que as vinte e quatro horas vão passar e talvez já nem sempre vá pensar em ti. Não porque te comece a esquecer, mas porque desses esquecimentos também se tece a sobrevivência. E tu sabes o quão ainda mais forte quero ser, o quão mais longe quero chegar, e todas as batalhas que quero vencer. 



lê isto: mãe, amo-te. 

sexta-feira, 7 de junho de 2013

photo © Sebastien Formosinho Sanchez Muller 2012
A rapariga estava sentada na mesa mais próxima à janela, duma madeira tosca, uma toalha branca fazia as honras da casa. Bebia alheada um copo de tinto que lhe tinham posto à frente, enquanto pensava em pouco ou em coisa nenhuma. A vida do outro lado da janela ajudava esta composição de nada, qual tábua rasa, incapaz de elaborar o mais básico pensamento. É no meio desta complexa cena que um estranho se aproxima.

Queria só fazer uma pergunta, onde é que te posso voltar a ver?

A rapariga, que não esperava aquela abordagem – ou qualquer outra de diferente natureza – ergue atónita a cabeça para perceber quem se lhe dirigia naqueles termos, e em jeito de resposta ensaia o verbalizar de um som, qual ponto de interrogação. O estranho, apercebendo-se do impacto da sua inusitada aproximação, coloca a pergunta novamente.

Onde é que te posso voltar a ver?

Inerte, a rapariga retorquiu um tímido e confuso No Saldanha...? O estranho reage saindo de cena, não sem antes deixar de presente à rapariga um sorriso convidativo. Ela permanece sentada durante aquilo que poderão ter sido uns poucos segundos ou alguns minutos, até que por fim o corpo lhe sai disparado mesa fora, numa tentativa vã de ainda encontrar aquela misteriosa figura. Atravessando a porta em direcção à rua, para trás deixou apenas uma toalha branca, e as gotas caídas do copo de vinho, estremecido na mesa à sua passagem abrupta.

terça-feira, 4 de junho de 2013

"2004 - 2013 Kreise schließen sich"

photo © Felix Müller 2013


O Torel já me tinha sido prometido por um fotógrafo português, mas ironicamente quem acabou por mo oferecer foi mesmo um fotógrafo berlinense. Mal estacionámos nos Mártires da Pátria, os olhos acenderam-se-lhe de entusiasmo como há já muito tempo não via acontecer com alguém. O Felix teve a sorte de viver duas curtas semanas em Lisboa algures em 2004, e dessas semanas ficaram-lhe dentro as ruas da Pena, as árvores do Torel, as tascas de Santa Marta, os rostos que cruzam estas ruas, tanto velhos, como novos!, como ele gosta de frisar. Que em Berlim, as idades tendem cada vez mais a não se misturar. Jovens abastados no centro, e idosos segregados para bairros mais desprovidos na periferia. Mas Lisboa não, Lisboa proporciona-lhe não só o encontro das culturas, mas também das idades. Visão curiosa esta que nunca tinha ouvido a ninguém.

Esta história podia ser a história de como ontem, volvidos dez anos desde a minha “aterragem” em Lisboa, ainda me consigo apaixonar por esta cidade. E nada como ser levada pelos olhos de alguém que consegue ser tão ou ainda mais apaixonado por ela do que nós. E a poucas horas do Felix levantar voo rumo a Berlim, lá me fez percorrer com ele as ruas da Pena.

Mas como dizia, esta não é mais uma história do meu amor a esta cidade. Esta é a história de como com 18 anos, o Felix descobriu nos rostos dos lisboetas uma vocação que haveria de lhe mudar o destino, fazendo dele o fotógrafo que é hoje. E foi na senda dessa vocação que numa das suas vindas a Portugal em 2004 acabou por retratar o senhor que veêm na foto. Era no número 99 da Calçada de Santana que invariavelmente acabava por almoçar ou jantar, deduzo que talvez nem tanto pela iguarias servidas, mas mais porque, tal como me admitiu, caiu de amores pelos proprietários. O Sr. António, de bigode simpático, e a D. Ermelinda, que enquanto por lá estivémos, não deixou de sorrir um único instante. E foi assim que tive o prazer de presenciar um momento único, uma espécie de viagem no tempo até 2004, quando o Felix entregou a foto ao Sr. António. Como portador de bigode que se preze, claro que o Sr. António foi pouco efusivo e não exteriorizou tantas emoções quanto as que acredito que sentia. Já o Felix não podia estar mais irrequieto, tal era a satisfação de quase dez anos depois, poder estar de volta para oferecer o retrato em mãos ao seu estimado modelo. A D. Ermelinda, como seria de se prever, esbanjou beijos e abraços, reconhecida pela empreitada que nos tinha levado até ali naquele final de tarde quente de Junho.  E o Sr. António lá fez pose mais uma vez, não para a máquina topo de gama  - que o Felix não levou, mas para o iPhone, e que hoje em dia lá vai cumprindo esta função de registar momentos já com algum aprumo. Dois moscateis fresquinhos em sinal de agradecimento, um último abraço e mais uns quantos beijos, e lá nos despedimos daquelas duas figuras com um até já esperançoso. 

I’m so happy that I could cry now, disse-me ele enquanto subíamos a rua. Não pude deixar de pensar em mim própria. Quando é que estive tão feliz pela última vez que me apetecesse chorar? Bom, afinal nem foi assim há tanto tempo quanto eu imaginava no início desta frase. E não é que tenha ficado à beira das lágrimas, mas ontem tive vários momentos em que me faltaram as palavras, em que quis articular os pensamentos que me atravessavam a mil à hora, e simplesmente não consegui. Desde que pus os olhos no Torel pela primeira vez, até que me despedi do Sr. António e da D.Ermelinda e o Felix me diz que estava capaz de chorar. Em todos esses momentos, pouco ou nada consegui dizer.


E não pude deixar de pensar, se afinal não é na linha dessas ausências de palavras em que às vezes nos encontramos, que se cose a felicidade.


And now for the artist... I hope my words don't get lost in translation... Here it goes.

Torel had already been promised to me by a Portuguese photographer, but ironically who ended up offering it to me was a Berliner photographer. We barely parked the car at Mártires da Pátria, and his eyes immediately enlightened such was the enthusiasm, in a way that I’ve seen in anyone for a long time now. Felix was just lucky enough to live for two weeks in Lisbon some when back in 2004, and from those times, he kept inside the Pena’s streets, the Torel’s trees, the taverns in Santa Marta, the faces that cross these streets, booth old and new!, as he likes to stress. That in Berlin, the ages don’t tend to blend anymore. Young and rich folks take over the city center, as the older people are segregated to poor neighborhoods   in the outskirts. But not in Lisbon, no; Lisbon provides him both the cultural and the age encounter. A curious sight that I hadn’t heard to anyone before.

This story could be the story of how yesterday, ten years after “landing” in Lisbon, I can still fall in love time and time again. And it’s even better if you’re taken by someone else’s eyes, someone who can be as much or even more in love whit the city then you already are. And with a flight back to Berlin only a few hours away, Felix made me walk Pena’s streets with him.
But has I was saying this is not another story on how much I love this city. This is the story of how with only 18 years old, Felix discovered in Lisbon’s faces a calling that would change his future, and turn him into the photographer he is nowadays. And it was somewhere along him searching this vocation that he ended up taking this man’s picture, back in 2004 in one of his trips to Portugal. It was on the Calçada de Santana, 99 that he usually ended up having lunch or dinner, I imagine no so much about the food, but maybe because, as he just admitted to me, because he had fall in love with the owners. Mr. António, with the nicest moustache, and Mrs. Ermelinda, the one that while we were there, didn’t stopped smiling for a single second. And that was how I ended up living an unique moment, a sort of a travel back in time until 2004, when Felix delivered Mr. Antonio the photo. As a proud moustache owner, Mr. Antonio wasn’t that much effusive, and didn’t put out as many emotions has I am sure he had inside. Now Felix, he just couldn’t stand, has he was so thrilled of finally being able, almost ten years later, to deliver to his cherished model, the picture he had taken. Mrs. Ermelinda, as expected, spread many hugs and kisses, clearly recognizing the journey that had lead us there on that unique and warm afternoon in June.  Once again, Antonio made his pose, not to the top gear camera – that Felix wasn’t carrying, but to the iPhone, which can perfectly perform it nowadays. Two fresh Moscatel as a sign of gratitude, one last hug and a few more kisses, and we said goodbye to those two unique figures with one hopeful see you soon.

I’m so happy that I could cry now, he told me as we walked up the street. I could help thinking about myself. When was I this happy that I could cry for the last time? Well, after all it wasn’t that long ago as I first thought at the beginning of this sentence. And it’s not as I was about to burst into tears, but there were several moments yesterday on which I had no words, I wanted to express the thoughts that crossed my mind flying, and I just couldn’t do it. Since I laid eyes for the first time in Torel, until the moment I said goodbye to António and Ermelinda, and Felix tells me that he could cry. In all of those moments, there was little I could say.


And I couldn’t help wondering, isn’t happiness about those absence of words that we experience so many times?

segunda-feira, 3 de junho de 2013


photo ©Ricardo Brito 2013



O ritual já pouco ou nada muda já vai para muitos anos. Ou serão rituais? Deverá considerar-se o conjunto das tarefas e por isso são rituais no plural? Ou é só o dia que conta por inteiro e assim o ritual é um só e articula no singular? Bom, também pouco importa. Tenho as flores à espera e o gato também já reclama das papas que não chegam.

Assim de repente, acho que o dia que nunca mais esqueci foi o dia em que cheguei a Lisboa. À época, ainda se aportava ali no Cais das Colunas, e ficava-se logo esmagado com a prepotência do homem a cavalo no meio da praça, ladeado por todos aqueles edifícios maiores do que algum que houvesse visto. Bah, mas aquilo hoje já pouco conta, é para inglês ver e já não tira o fôlego a ninguém. Mas quando cheguei, senti-me tão ou mais emigrado lá da terra quanto ou outros todos que foram para França, para aqui e para ali, tais eram as diferenças de cores, de sabores, de cheiros, dos ruídos! E eu que nem sapatos trazia calçados, verdade verdadinha! De pé descalço, toquei esta terra pela primeira vez, diminuído na soberba daquela praça que me esmagou e me fez ainda mais pequeno, agarrado à trouxa que trazia, meio pão de azeite, um cantinho de chouriço, e no cantil, vinho já nem vê-lo. Eram outros tempos, a comida era pouca e o calçado ainda menos – ou o dinheiro para os comprar, os anos são tantos que já nem distingo bem. Mas também o que interessa? Não deixo descendência, não tenho a quem contar estas histórias. Da família, nunca mais soube nada. Amigos também nunca foram muitos, e os poucos que havia foram padecendo por esses hospitais fora, uns no Santa Marta, outros ao Santo António, e tanto foi, tanto foi, que fiquei sem nenhum. Aos vizinhos também não os vejo, nem tão pouco me preocupa. Não é agora com esta idade que me vou por a falar com estranhos, só para ter com quem falar. De dia falo com o gato, à noite rego as flores, e assim vou levando.

À parte do dia em que aportei ao Cais das Colunas, em já pouco ou nada distingo os dias que uns atrás dos outros me trouxeram até este em que hoje conversamos. Trabalhei, trabalhei muito. Mas e do que conta? O trabalho está feito, e do que ficou por fazer também ninguém quer saber.

Nem é que pense muito nisso, que eu cá não perco tempo com tontices, o que está feito, feito está e já nada vai mudar. Mas volta e meia, calho a imaginar cá para mim como teria sido se naquele dia nunca tivesse chegado ao Cais das Colunas, se me tivesse deixado ficar pela terra. Se calhar tinha um quinhão de terra, cultivava umas coisitas, e às tantas ainda me tinha calhado em sorte uma das filhas da velha Ermelinda, a parideira lá da terra que tanta saúde pôs neste mundo nos corpos esguios daquelas filhas. Ai, as filhas da Ermelinda. Mas pronto, não calhou a ser assim, e por isso é que lhe digo, que o dia que gravei na memória foi o dia em que cá cheguei. Porque os dias para trás foram todos iguais, e os dias para a frente foram tudo menos diferentes. E o resto olhe, é o que aqui vê, é este regador, agarro-o todas as noites para lhe pôr água e dá-la às flores, é o gato, que tirando as costelas que se lhe vê, lá vai comendo umas coisitas, e é isto.



Ficou bom assim?