terça-feira, 29 de outubro de 2013



“Não fosse o amanhã, que dia agitado hoje seria”, li hoje algures.

Verdade. Tão verdade que dói. Porque se não fosse o medo do amanhã, o receio do depois, o antecipar de todos os riscos e de todos os perigos, a agitação do dia de hoje seria deliciosamente incomensurável. E de todos os beijos que quero beijar, de todos os abraços que quero abraçar, de todas as palavras que quero sussurrar e de todos os aconchegos em que me quero aninhar seria feito o meu dia. E de todo o amor que até agora não dei, com medo da aterradora negativa que sempre se faz omnipresente a cada conversa, a cada redescoberta, a cada partilha de que afinal não se estava à espera. Essa malvada negativa, que assusta mais do que a ausência que já existe, e à qual - mal ou bem - já nos habituámos por força das circunstâncias. Mas o facto de estarmos habituados a uma coisa, não significa de todo que gostemos dela. E por isso, à ausência que habitual se fez não se pode permitir a implantação de raízes. É passageira, temporária, e há-de dar azo a outras presenças, felicidades, momentos partilhados que tanto enchem e aquecem o coração.

A cada dia que passa, sinto-me mais e mais implodir dos beijos que não beijo, dos abraços que não abraço, das palavras que (ainda) não te sussurrei, dos aconchegos a que (ainda) não me permiti. Pois se só hoje houvesse, sem sombra nem ameaça de um amanhã amanhecido, com um toque de lábios calaria as somas e as subtracções, as projecções de risco e todas as aritméticas do sentir. Fazer contas é preciso, mas cansa. Isto quando não nos deixa mesmo esgotados e à beira da exaustão. A minha conta sei de cor qual é, tão simples que é de fazer, tão intensa que é de sentir.

1+1 = 2

Porque não fosse o amanhã, que dia agitado hoje seria…

quinta-feira, 24 de outubro de 2013




Ar dentro.

Ar fora.

Ardentroarforaardentro.

Fecho os olhos, e dou-me uma oportunidade mais de tentar encher os pulmões de ar. O espaço que devia ter dentro está demasiado ocupado de memórias, de fotografias rasgadas, músicas ouvidas pela metade, refeições que acabam com todos os pratos e todos os copos partidos pelo chão. Um força aleatória de ar é por fim bem sucedida em explodir em vida nos meus pulmões, que tanto dela precisam para me oxigenarem o coração, para me oxigenarem o pensamento. No purgatório que é todo este ritual, nunca sei quando será a última ou a próxima vez em que conseguirei fazer com que o meu corpo respire, em que a matéria reaja. A cada tentativa, temo ou anseio que seja a última vez que me sinto insuflar. Porque nunca como desta vez o corpo havia caminhado a par e passo com a mente. E agora tudo dói, o ar que não circula, o coração que se contrai, os olhos que se fecham com violência. Sei o que me falta para esfaquear este elefante que acampou no meio do salão. Sei, e tremo de o saber. A verdade é crua de mais, e o meu corpo fraco de mais para a abraçar uma vez mais. Desvelado o deixo, intimamente desejando que as águas desta chuva interminável o sorvam gota a gota, para dele não mais haver rasto que o denuncie

domingo, 20 de outubro de 2013


The business of life is the acquisition of memories. In the end, that's all there is.
Mr. Carson, Downton Abbey

Sempre que confeccionava um prato novo, uma sofrida antecipação em ansiar a tua aprovação, o garfo mais exigente que já me passou pelas mãos. Na descoberta de uma série nova que valesse muito a pena, a excitação de a partilhar contigo, quando tu muito provavelmente já tinhas chegado ao terceiro ou quarto episódio. E a cada pequena vitória ou a cada grande conquista, uma vontade louca de dividir contigo essas alegrias de que se faziam alguns dias. Guerrilhas eternas em torno das refeições, porque a tosta de frango já soava a repetido, e a salada de polvo talvez fosse um acto negligentemente heróico para primeira refeição do dia. "Levo casaco? Achas que vou ter frio? Levo gorro? Ténis ou chinelos? Esta camisola ou antes aquela?" Não sei, despacha-te, que o que mais quero é ir apanhar sol! Mas bem lá no fundo, deliciar-me dessas indecisões que te faziam dependente da minha opinião, afinal tão importante no frio que ias sentir ou se devias ou não tapar a cabeça com o tal do gorro. Incontáveis os beijos que perdia para os mais que muitos esquissos espalhados pela casa, ou para as letras que escrevias hipnotizado em frente ao teu adorado Mac. Mas cada beijo não recebido valia a pena, pois desses beijos que deixámos suspensos no tempo, se construiu um dia atrás do outro uma admiração por um lado artístico tão inevitavelmente atraente, tão irremediavelmente viciante.

E é destas aquisições de memórias - umas certamente mais relevantes e úteis que outras - que se alimenta um sentimento quando se ama alguém. E são também estas memórias que nos tolhem o discernimento quando o que está em causa é um processo de esquecimento do qual depende a nossa sobrevivência, o manter a cabeça à tona da água. Tudo, mas tudo se complica, quando se confunde a alimentação desse sentimento, com o amor às memórias do que se viveu. 

E no fim de contas, o que prevalece afinal? Será o amor, ou será a força atroz das memórias, que num movimento centrípeto e quase impossível de contrariar, não nos deixam delas escapar? Porque como diz o Carson, e bem... In the end, that's all there is.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Ego(s)

Photo @  Ana Ribeiro Lages 2013 Sevilha

Esfreguei a minha pele com quanta força tinha. Calquei-a forte contra o chão, raspei-a com violência contra as paredes, sangrei-a sem dó nem piedade em arestas afiadas. Queria arrancar a pele tua que resistia ainda na minha. Queria rasgar-te para fora de mim, desventrar-te das minhas entranhas e desfeita ficar, mas só eu, sem artes nem manhas, nem facas afiadas para me apunhalarem. Sim, apunhalarem, que do amor tantas vezes se faz sangue, vísceras são expostas, interiores são revolvidos para nunca mais voltarem a ser o que sempre eram. Das palavras fazer vento, e não as deixar entrar pelas brechas e chegarem fundo, onde alegram e fazem doer. E do vento não respirar uma molécula só, que à mínima falência do espírito, e juro ser capaz de me desfazer no calor do teu colo, e de lá não mais acordar para o que uma vez fui. Vi-te esfumaçares-te entre os pós da praia, vi-te bebido em tantos copos em noites que não acabavam mais, vi-te fumado nos incontáveis cigarros das tardes aflitas. E depois de te ver e fazer desaparecer tantas e tantas vezes, degolas-me uma vez mais sem sombra de misericórdia que te tolde o olhar. Frio, egoísta, ditatorial. E eu, escrava desses pesares de amor de que me arrasto, vergo-me ante tamanha violência, destemida que sou também eu. Se me tocas com um dedo só, desfaço-me. Sem promessas que das cinzas venha a renascer, entrego nas tuas mãos o condão de me encontrares. Não sou anjo nem fada, tenho costas e de asas nunca ouvi falar. Sombra também tenho, deixo-a por onde passo em Lisboa quando passo, entre um ponto e o outro. Segue o meu rasto, hei-de lá estar.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Quando o motivo me encontrar,
vou pensar em assentar,
fazer a roda girar
despir, beber , fumar
Só mais um gole, só mais um bafo                                     (sim, outra vez)
E sem embaraço, cair num desabafo do teu abraço.


photo @ JP.Fernandes notaloneinmybrain

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Cards on the table
We're both showing hearts
Risking it all though it's hard
All of me, John Legend



photo @ Clickt 2013 | www.clickt.com.pt
A vida inteira esperei por ti. Sabia que de uma maneira ou de outra, caminhávamos trágica e irremediavelmente na mesma direcção, todos os segundos, minutos, horas, todo o tempo. Sempre na direcção um do outro, em inevitável rota de colisão. Um trajecto que nos faria explodir um contra o outro para não mais nos reconhecermos como eu nem como tu, mas como uma matéria só, inextricável, una e perfeita. Verdades há que o destino demora a desvendar, evidências que demora a entregar a quem de direito. Mas quando dessas evidências se cumprem premissas com que sonhámos em cada acordar e a cada adormecer, nada mais importa. Nenhuma mágoa, nenhuma desilusão, nenhum desapontamento. Nem os beijos que ficaram por beijar, nem os abraços por abraçar. Desfazem-se as ansiedades numa melancolia recíproca, e enrolados um no outro ficamos quietos e em paz, sabendo que do amor que hoje vivemos, amanhã nos havemos de multiplicar, plenos, realizados, felizes.

sábado, 12 de outubro de 2013

Leu, releu e voltou a ler, mil vezes as quinze palavras, arrumadinhas umas atrás das outras, enigmáticas, provocantes, delicodoces. Memorizou-as uma a uma, a vírgula e o ponto final.

Às vezes, passo aqui na tua rua só para te dizer um olá em segredo.

Às vezes, passo aqui na tua rua só para te dizer um olá em segredo.

Às vezes, passo aqui na tua rua só para te dizer um olá em segredo.

E riu-se por dentro ante tamanha ironia. Quantas vezes ficara ela própria prostrada na varanda, por companhia a ponte e o Cristo. Quantas vezes ficara ela própria sentida na varanda, na esperança de o ver passar para lhe dizer um olá.

E afinal ele passava, e ela sem saber. 
E afinal ela esperava, e ele sem querer saber.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

photo @ JP.Fernandes notaloneinmybrain
Acendo mais um cigarro enquanto penso em ti mais uma vez e no contraste intrigante que é o meu corpo e o teu emaranhados um no outro. Tenho o teu cheiro entranhado na pele e por muitas voltas que dê, não consigo sentir o cheiro que é o meu. Só o teu, denso e calcado fundo. Nem o fumo do cigarro que se desfaz entre os meus dedos se lhe sobrepõe, qual soberania de odores à qual não consigo ficar imune.


As palavras que te colocaram na boca, despeja-las com mestria em cada ponto do meu pescoço, ponto de partida indelével para os centímetros mais que se adivinham. Ciente dessa falsa magia em que julgas que me envolves, visto-me de ingenuidade enquanto me despes subtil e obstinada, numa delicadeza que só os corpos tinge, sem nunca chegar a ameaçar verdadeiramente os sentimentos. De pedra revesti as batidas, o sangue, as artérias e todos os componentes do coração que tenho dentro. Um intrincado sistema de defesa, difícil de desarmar, impossível de ludibriar, mas cheio de falhas na iminência de explodirem nas mãos de quem as ousar perscrutar

quarta-feira, 2 de outubro de 2013


Fosse eu Rei do Mundo, 
baixava uma lei: 
Mãe não morre nunca, 
mãe ficará sempre 
junto de seu filho 
e ele, velho embora, 
será pequenino 
feito grão de milho. 

Carlos Drummond de Andrade, 
'Lição de Coisas'




Aquele nó inextricável na garganta, que já conheço melhor que ao sangue que me corre nas veias. Esse, não sei que alguma vez o hei-de chegar a conhecer verdadeiramente. Não agora, que já não estás cá. 

Mas o nó na garganta conheço-o de trás para a frente.

Um nó que inevitavelmente me traz lágrimas aos olhos, para depois caírem num colo onde nunca secam. Um colo que já não tem colo onde cair. Nunca teve. E num destes dias, do nó se fizeram lágrimas outra vez. E já tinha passado muito tempo, talvez tempo demais, desde que tinha deixado cair estas lágrimas por ti. Foi quando o percebi que me entreguei às evidências e me permiti o choro que andava a calar há tanto tempo.  Porque já são mais os dias que passam sem que pense em ti e na saudade que deixaste, do que os dias que sofro por não te ter para abraçar, para rir e para me zangar. 

Sim, para me zangar. 

Que de me ter zangado tão poucas vezes contigo, hoje zango-me muitas vezes comigo, e com pessoas que não te conhecem de lado nenhum e nem sabem que me zango com elas por me ter zangado tão pouco contigo. Confuso? Pois, também achei quando mo explicaram. Mas afinal fazia todo o sentido. Porque há zangas que é preciso ter, e eu que nunca me quis zangar contigo, mãe, nunca. Sempre te quis protegida, amada, cuidada, feliz. E zanguei-me tão, mas tão pouco... 

E chorei porque achei triste já não pensar em ti tantas vezes. Deve ser mais um dos meus automáticos mecanismos de defesa, desses em que já sou mestra desde que aprendi o que era o sofrer e sobre os quais podia dar prestigiadas palestras sem tremer a voz uma vez que fosse. 

Mas a vida tem maneira estranhas de te trazer até mim de vez em quando. E hoje, um like numa foto minha e tua despoletou uma adorável corrente de beijinhos, abraços e corações de que não estava à espera. E em cada um deles, senti um beijo teu, um abraço teu, o teu coração colado ao meu. Como se de alguma maneira me gritasses 

estou aqui, não te esqueças de pensar em mim

Eu NUNCA hei-de deixar de pensar em ti, mãe. Só não posso prometer fazê-lo todos os dias. Porque mesmo passados seis anos, continuas a doer-me, e ainda não consigo vislumbrar um dia em que a tua partida venha a ser apenas mais uma das muitas pedras que já conto no caminho.