domingo, 24 de novembro de 2013



Faz frio em Novembro. A roupa, perdera-a algures entre a cozinha e o palmo e meio de cama onde se aconchegava. O lençol pareceu-lhe trocado com a manta, e a madeira azulada fazia uma estranha combinação com um peça de mobiliário nórdico daquela mesma cor que se recordava de ter visto algures. Lembrava-se de ter adormecido de sorriso assomado, mas não do exacto momento em que acontecera. Um anónimo par de mãos acomodara-lhe as roupas de cama umas duas ou três vezes, onde por fim repousaram também para se entregarem ao sono que antecede um novo dia. 

Isto de adormecer de lábios em riste tem que se lhe diga, pensou. Quero mais.
photo @ Gonzalo Sandoval | India 2012 | http://almayluz.com/


O homem tinha visto sépia a vida toda. Os médicos nunca tinham dado explicação para aquela rara condição, ele tampouco procurara encontrar respostas para além do que já sabia, e que resumia ao cru e despretensioso facto de que via em tons sépia desde que pela primeira vez pousara os olhos nas coisas. Dos olhos sépia e das mãos recortadas de agruras e de lavoura, saiam-lhe desenhos que tinha dificuldade em reconhecer como sendo seus. Sentia-se uma disformidade por não enxergar as cores, como todos os outros. E isso tornava o que tinha dentro num enorme dia cinzento, como se de lá não saísse outra coisa que preto e branco. Que ironicamente era o que invariavelmente acontecia que apostava o carvão contra o branco do papel e rabiscava, rostos, prédios, sentimentos desenhados à exaustão, ao ponto de não distinguir mais as linhas finas dos seus dedos entre os rastos da cinza. A última vez que o vi, armado de lápis e papel, escarafunchava qualquer coisa com violência contra os joelhos, como que buscasse uma resposta para a qual não o vi colocar um ponto de interrogação antes. Nunca mais o vi, acho que nunca mais ninguém o viu.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013


"Leaving is not enough; you must stay gone."
Frida Kahlo para Marty McConnell


Diz-me que não

Não consigo

Diz-me já, com todas as letras, JÁ-NÃO-QUE-RO-ES-TAR-MAIS-CON-TI-GO

Não posso, não consigo, não sei

É no mínimo insensato esperares que eu o faça, se tu próprio és a vítima primeira de uma afasia ridícula que não to permite verbalizar, tampouco concretizar em gestos que não contrariem tudo o que dizes.

Apertaste o corpo contra o meu com violência, não permitindo um milímetro de espaço entre nós.

Sufocaste de beijos sôfregos a minha boca, mal conseguia já respirar.

Velaste-me em cuidados mil, levada ao colo num abraço de uma noite maior que a vida.

Apertaste-me o queixo entre os teus pequenos dedos e repetiste-me à exaustão

Olha para mim

Olha para mim

Olha para mim

Subserviente, olho para ti há tempo demais. Olho para ti desde que a tua presença me desinquietou no meio do alvoroço feliz em que me encontraste um dia, olho para ti desde que o teu carinho me resgatou à mais longa e escura noite em que já dormi, olho para ti desde que o teu desassossego me contagiou irremediavelmente e nunca mais a letargia fez parte do meu vocabulário.

Olho-te, mas não consigo mais prender-me ao fundo dos teus olhos. Porque quando o faço, sempre encontro um trejeito que contraria cada palavra que proferes. E por mais que me apeteça lá ficar, sou obrigada a olhar noutra direcção, para não ver mais verdades nos teus olhos que mentiras na tua boca.

Valesse mais um olhar que se oferece que o som de uma palavra.




segunda-feira, 18 de novembro de 2013



Os pés contorcem-se em reclamações dentro dos sapatos, desabituados que estão deste tipo de apertos. Os joelhos barafustam com a altura a que os pés se encontram do chão, e na base da nuca consigo tocar uma pequena rasta, troféu máximo do desprezo a que o cabelo foi votado durante todo o verão. Segue até agora queimado do sol, tenso, desalinhado. Não fui feita para sapatos altos, nem para viver num aquário. Mas também, quem podia prever que numa fase em que era suposto escolher o caminho a seguir, iríamos mergulhar na mais frustrante e incapacitante crise económica de que há memória?

Se já era difícil fazermos o que queríamos, agora esses sonhos parecem completamente inatingíveis, impossivelmente esquecidos num passado irrecuperável. E a última coisa que me apetece fazer é compor o cabelo, cuidar que as unhas apresentem o verniz adequado, engomar o meu melhor fato (a utilização do substantivo fato nesta fase da narrativa tem apenas o carácter lírico de ilustrar, dado que não tenho nem nunca tive nenhum fato) ou calçar os sapatos menos desconfortáveis que calhar a encontrar lá por casa. Queria sim, confundir cada fio de cabelo de tanta água, de tanto sal, que não mais se consigam destrinçar uns dos outros, quero apagar de sol este branco esquálido e abjecto que se apoderou da minha pele sem aviso prévio, quero pintar as unhas de areia e de sonhos, dez sonhos que ainda não concretizei, e outros dez que ainda hei-de sonhar, quero vestir-me de brisas que aliviem e de ventos que tragam felicidade. E espoliada dos penteados, dos vernizes, dos fatos e dos sapatos, quieta ficar entregue ao beijo de luz que cada lua me traz à alma, pois que nesse momento etéreo saberei de que é feita a felicidade, mais movediça que a areia que tanto gosto de pisar…


domingo, 17 de novembro de 2013

se chorar no banho e as lágrimas não mais se distinguirem da água, conta como choro legítimo?

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

photo @ Anne Arden McDonald www.anneardenmcdonald.com

Noutro dia, dei por mim a ir sozinha ao DocLisboa, e se há poucas coisas que me proponha a fazer sozinha, uma delas é sem dúvida ir ao cinema. O documentário versava sobre a imagem na Coreia do Norte, mas pouco ou nada fiquei a saber sobre o assunto, já que dei por mim a dormir a maior parte do tempo. Era Domingo, cinco da tarde, estava ligeiramente de ressaca e lá tive que ceder e deixar-me dormitar em pleno filme, pese embora fosse um assunto que me interessasse.

A última vez que me lembrava de ter feito algum programa sozinha, foi numa das idas a Londres, e lá me pus a ver o Museu de História Natural… sozinha. Depois de me ter apercebido da dimensão dantesca das salas, decidi começar por arriscar uma sala onde vi uma estátua da Ilha de Páscoa. E pronto, foi isto, dei meia volta e mandei-me para a rua, onde pelo menos entre as pessoas tinha a ilusão de não deambular por minha conta e risco (afinal de contas, ainda bem que não vi o Museu, que este mês volto lá com o meu irmão e sei que nos vamos divertir muito mais a conhecer o Museu juntos).

Esta coisa de andarmos e fazermos coisas sozinhos pode causar estranheza quando durante muitos anos nos habituámos a ter alguém que automaticamente nos acompanhava para todo o lado. Mas o medo da solidão não se deve confundir com a fobia de nós próprios. Todos temos fantasmas, esqueletos no armário cujas portas não gostamos de abrir. E estarmos sozinhos deixa-nos especialmente vulneráveis a todas as coisas que nos amedrontam. Mas estar sozinho não tem que ser necessariamente mau. Antes pelo contrário: se bem aproveitado e compreendido, pode e deve ser um momento de reforço do nosso ego, da nossa força interior, e especialmente, da sã convivência connosco próprios, por muitos fantasmas e esqueletos que possamos encontrar perdidos dentro de nós.

Por mim falo, que passei uma vida inteira a “varrer para debaixo do tapete” tudo que me assustava, tudo que me magoava, tudo que me deixasse frágil, vulnerável, indefesa. E se em muitos momentos, a minha sanidade mental dependeu de me isolar da realidade e em fazer-me acreditar que tudo havia de ficar bem, hoje felizmente já não preciso de me esconder dos piores sentimentos nem de fingir que tudo vai ficar bem. Permito-me sentir a dor quando tenho que a sentir, permito-me chorar a tristeza quando tenho que a chorar, e permito-me especialmente viver a zanga quando assim se impõe.

Hoje tenho o privilégio de poder fazer o que não fiz durante um passado inteiro. Ao invés de contornar as dificuldades tapando os ouvidos e fechando os olhos, abro agora os armários todos e sacudo bem sacudidos os esqueletos. Mas que não se pense que o facto de o fazer voluntária e conscientemente torna a busca mais fácil. Nada mesmo. Perscrutar o que temos dentro não é de todo uma tarefa fácil, quanto mais prazerosa. O bom disto tudo, é que a dada altura se percebe que afinal cá dentro há mais do que armários empoeirados. Há salas cujas portas apetece abrir, cuja luminosidade se quer aproveitar, sentar e desfrutar da vista. Afinal, estar sozinhos connosco próprios é até bom, e não tem que ser nenhum bicho de sete cabeças.

Excepção feita, claro está, a idas solitárias ao cinema que se transformam em sestas por falta de quem nos obrigue a estar acordados. Um desperdício de dinheiro…



terça-feira, 12 de novembro de 2013

Photo @  Ana Ribeiro Lages 2013 Lisboa (vinte&oito)


Perdi o fio à meada. Deixei de contar as dezenas, centenas, milhares de cartas de amor sem carteiro que mas leve que se foram acumulando na minha cabeça a cada segundo que a distância aumenta e só me aperta mais o coração. A última, revia-a mentalmente uma segunda-feira, ainda não eram oito da manhã e já o vinte&oito fazia as honras descendo a Almirante pomposo para em passando a Palma, romper Martim Moniz adentro. Distraída, revia as palavras que se desarrumavam dentro, para logo depois seguirem aleatórias solitárias viagens rumo a nenhures.

Uma silhueta de sexo indefinido assoma-se ao lugar vago que ainda sobra no meu banco. Não olho, não me interessa, não quero saber de mais nada há muito tempo, não me preocupo, não questiono, não refuto. Aceito, espero e rejubilo ante a possibilidade da tormenta virar calmaria. Acenando-me gestos pouco precisos, julgo que a intenção dessa figura é tão só e apenas a de sentar. Desengano-me logo de seguida quando me toca ao de leve no ombro O seu título de transporte, por favor. Quando lhe devolvo o toque com o virar do rosto, não vou a tempo de elevar rápida a mão e secar a última lágrima, herdeira solitária da carta de amor que apenas cruzava os pensamentos daquela manhã. Ele segura-se nela (na lágrima) por alguns segundos, para logo de seguida me deixar em detrimento de um qualquer outro passageiro que por ali deambule àquela hora vespertina, O seu título de transporte, por favor.


Puta de mania essa a de chorar em transportes. E no entanto, estes continuam a ser o melhor sítio do mundo para chorar as cartas de amor que nunca hei-de expedir, que sem destinatário hão-de ficar, pois de mim e de ti não mais se escreverão mais palavras que justifiquem tantas e tantas cartas de amor por entregar. Delas me desfaço em lágrimas que povoam os bancos do vinte&oito, do sessenta, da linha verde e da azul.  

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Não destrinçava com facilidade de onde lhe chegava grande parte do ruído. Se dos autocarros que dias inteiros se atropelavam nas faixas só deles, se das pessoas atabalhoadas e afoitas por um lugar nesses mesmos autocarros, ou se dos pedaços de vidro incontáveis que lhe rebentavam dentro do peito, qual campo minado. A cada passo, um corte no pé, no outro pé, sangue e mais sangue e cortes que não estancam. Como margens de rio, sempre paralelas, sempre lado a lado, sempre sem se tocarem. Nunca, sempre, nunca, sempre. Uma impermanência impiedosa do ímpeto pelo futuro, da procura das respostas, o tudo ou nada que decide uma vida. O saltar do penhasco ou o recolher do corpo e das memórias para o tempo que dura uma eternidade, um espaço infinito de saudade e de ausências composto.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013



O maior passo que dei de forma significativa rumo ao que tenho dentro, foi no dia em que percebi que o meu enorme iceberg ainda estava com apenas 10% de massa à superfície. E toda a gente sabe que os icebergs são um perigo constante à navegação. Mas o erro que cometi logo a seguir e até há bem pouco, foi o de achar que os restantes 90% iam deixar de estar submersos rapidamente.

Errada, claro está.

A chamada ponta do iceberg é mais aguçada do que o desejado, mais do que gosto de admitir. E agora, é deixar fluir um degelo lento, mas progressivo, pois que um dia chegará em que não serei mais gelo, nem 10% de fachada e 90% de verdades ocultas. O passado pesa. Pesa muito, porra. E vem-nos de dentro, de cada órgão, de cada gota de sangue, viral e perigoso, para nos consumir se assim o deixarmos. Não quero explodir-me um dia nas mãos, quero levar-me devagar do presente ao futuro, onde um tempo virá em que será tranquila a existência de um passado. E aí não serei mais réstia de gelo, senão água que corre limpa, rápida, cristalina. 

terça-feira, 5 de novembro de 2013




METADE
Oswaldo Montenegro

Que a força do medo que tenho
Não me impeça de ver o que anseio

Que a morte de tudo em que acredito
Não me tape os ouvidos e a boca
Porque metade de mim é o que eu grito
Mas a outra metade é silêncio.

Que a música que ouço ao longe
Seja linda ainda que tristeza
Que a mulher que eu amo seja para sempre amada
Mesmo que distante
Porque metade de mim é partida
Mas a outra metade é saudade.

Que as palavras que eu falo
Não sejam ouvidas como prece e nem repetidas com fervor
Apenas respeitadas
Como a única coisa que resta a um homem inundado de sentimentos
Porque metade de mim é o que ouço
Mas a outra metade é o que calo.

Que essa minha vontade de ir embora
Se transforme na calma e na paz que eu mereço
Que essa tensão que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada
Porque metade de mim é o que eu penso mas a outra metade é um vulcão.

Que o medo da solidão se afaste, e que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável.

Que o espelho reflicta em meu rosto um doce sorriso
Que eu me lembro ter dado na infância
Por que metade de mim é a lembrança do que fui
A outra metade eu não sei.

Que não seja preciso mais do que uma simples alegria
Para me fazer aquietar o espírito
E que o teu silêncio me fale cada vez mais
Porque metade de mim é abrigo
Mas a outra metade é cansaço.

Que a arte nos aponte uma resposta
Mesmo que ela não saiba
E que ninguém a tente complicar
Porque é preciso simplicidade para fazê-la florescer
Porque metade de mim é plateia
E a outra metade é canção.

E que a minha loucura seja perdoada
Porque metade de mim é amor
E a outra metade também.