sexta-feira, 23 de maio de 2014


“Magoadinhos da piça, é o que eles são todos”.
Quem mo disse pela primeira vez foi uma das meninas de Aveiro. Qual delas já não sei, que os anos passados entre nós já são dez e às vezes já confundo quem me diz uma coisa, quem me diz outra. Quiproquós à parte, o que sei é que a partir desse dia a psicologia masculina deixou de me parecer tão complicada quanto a julgava. Não que o sexo oposto me instigue confusão e intriga suficientes que passe horas a pensar nisso.
Mas os magoadinhos da piça são um caso à parte.
Nós, mulheres, temos os hábitos do costume, e que não são novidade nenhuma para ninguém. Ele é cortar o cabelo, é renovar o guarda-roupa, é ocupar o tempo com as amigas, normalmente a desdizer o sexo oposto. Isto, claro está, quando não somos também nós umas verdadeiras magoadinhas - mas com essas já eu não me coaduno -  e nos fechamos no quarto a comer baldes de gelado e a ver as piores comédias românticas que o Wareztuga tem para oferecer. Isso, e ver os pêlos crescer, porque já não temos com quem partilhar a nossa pele lisa e linda. E a coisa geralmente resume-se a isto, ou nos safamos com o tal corte de cabelo novo, recompondo-nos à força da tesourada, ou engordamos um ou dois quilos à conta da maldita caixa da Haagen-Dazs De uma maneira ou de outra, lá fazemos o luto antes de apanharmos o próximo táxi.
Mas o magoadinho da piça é aquele gajo a quem o corte de cabelo novo nada faz, e que nem uma caixa de gelado e todos os piores filmes do mundo juntos podem salvar. O magoadinho da piça é aquele gajo que salta de relação em relação, e ainda o corpo da ex-namorada não arrefeceu, já ele está de armas e bagagens – que é como quem diz, com todos os seus dilemas e frustrações de magoadinho – pronto para chorar no colo da namorada nova (ou será a vítima nova?). O magoadinho da piça é aquele gajo que já não quer estar contigo, mas que contraditoriamente não se inibe de querer saber de ti - de preferência se continuas a sofrer por ele. O magoadinho da piça é aquele gajo que até pode nem te querer mal nenhum deste mundo, mas opta por não te falar, porque é mais fácil não ter que te dirigir a palavra do que ver o passado escarrapachado na tua cara. Ou vá, não vale a pena tapar o sol com a peneira, às vezes só não te fala porque és mesmo uma grande cabra. 
Feitas as contas, o magoadinho da piça é uma epidemia, uma praga, uma ameaça. Não tenho nenhuma amiga que não conte com pelo menos um na caderneta de cromos. Acho mesmo que nesta vida ninguém se livra desse mal. Dois, só se fores muito parva, porque quem aguenta um primeiro, já não quer experimentar um segundo. Às tantas, o magoadinho até pode ser encarado como uma mal necessário, uma espécie de varicela que quando tida na infância, nos previne de males maiores na vida adulta. Quem tem um magoadinho no passado, fica a saber exactamente do que é que NÃO precisa no futuro. E vistas assim as coisas, vivam os magoadinhos da piça!
Mas mais não, obrigada.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

"Na bruma leve das paixões que vêm de dentro
Tu vens chegando para brincar no meu quintal..."




Ele foi andando e eu nem dei por isso. 

A abruptidade com me deparei sozinha não podia ter sido mais contrastante com a subtileza com que reparei que já não havia esqueletos dele no meu armário. O ar tão mais limpo, as ideias tão mais certeiras, o corpo tão mais descontraído. Clara como água a vontade de viver mais e mais, mesmo sabendo que não só das alegrias se faz o caminho, mas de coisas menos boas também. 

Há uns bons meses atrás já tinha dado pela partida, quando agarrada ao volante cantei aos berros uma música qualquer que me chegava da rádio. E desde que cantei essa música, um sambinha bom vem embalando o meu coração, enchendo-o mais de mim e cada vez menos do supérfluo que esteve a mais, por tempo de mais. Agora, só o sambinha me percorre. E tão, mas tão bom que é esse acorde doce que me lembra que ainda vou ser mais e mais feliz. 

Oh, sambinha bom...

terça-feira, 13 de maio de 2014


"Leaving is not enough; you must stay gone."
Frida Kahlo para Marty McConnell


Diz-me que não

Não consigo

Diz-me já, com todas as letras, JÁ-NÃO-QUE-RO-ES-TAR-MAIS-CON-TI-GO

Não posso, não consigo, não sei

É no mínimo insensato esperares que eu o faça, se tu próprio és a vítima primeira de uma afasia ridícula que não to permite verbalizar, tampouco concretizar em gestos que não contrariem tudo o que dizes.

Apertaste o corpo contra o meu com violência, não permitindo um milímetro de espaço entre nós.

Sufocaste de beijos sôfregos a minha boca, mal conseguia já respirar.

Velaste-me em cuidados mil, levada ao colo num abraço de uma noite maior que a vida.

Apertaste-me o queixo entre os teus pequenos dedos e repetiste-me à exaustão

Olha para mim

Olha para mim

Olha para mim

Subserviente, olho para ti há tempo demais. Olho para ti desde que a tua presença me desinquietou no meio do alvoroço feliz em que me encontraste um dia, olho para ti desde que o teu carinho me resgatou à mais longa e escura noite em que já dormi, olho para ti desde que o teu desassossego me contagiou irremediavelmente e nunca mais a letargia fez parte do meu vocabulário.

Olho-te, mas não consigo mais prender-me ao fundo dos teus olhos. Porque quando o faço, sempre encontro um trejeito que contraria cada palavra que proferes. E por mais que me apeteça lá ficar, sou obrigada a olhar noutra direcção, para não ver mais verdades nos teus olhos que mentiras na tua boca.

Valesse mais um olhar que se oferece que o som de uma palavra.



segunda-feira, 5 de maio de 2014

Da serena(idade)



Encho os pulmões de ar, o comprimido já fez efeito e já consigo respirar sem dor. As dores nas costas não me largam, malvadas. Seja a idade, o stress ou a ansiedade, o que é certo é que já não passo sem yoga, massagens periódicas, comprimidos em S.O.S. e uma ou outra sessão de fisioterapia. E não, não tenho sessenta anos, ainda não vou a meio dos vinte e nove e já me pesam os balanços que antevêem os trinta. Os balanços, e as dores nas costas, malvadas. Num cenário optimista (ou será pessimista?...), um terço da minha vida já lá vai, o que já me confere alguma autoridade para tais balanços, olhar para trás e para frente, apontar baterias para os sítios “certos”. Ainda não casei, nem sei se alguma vez o farei, e o pesado baú de madeira que mantenho desde a infância já pouco enxoval guarda, um pano ou outro de cozinha que tenha sobrevivido às minhas investidas, e aqueles lençóis fora de época que nunca hão-de servir para nada. De resto, pouco me sobra das incumbências provincianas com que fui educada, se é que se pode chamar educação àquilo que me foi (ou não) transmitido enquanto crescia numa aldeia onde as mentalidades continuam impermeáveis e as línguas se preservam afiadas.

Duas longas relações findas porque pura e simplesmente não tinham que ser, outras tantas amizades purgadas pelo tempo, e descubro agora os prazeres da individualidade mas também de me rodear exclusivamente de pessoas que me querem bem, que me fazem bem, que me fazem mais feliz. E enquanto cresci e cresço, demorei a percebê-lo, mas entendi finalmente que o processo de amadurecimento não é mais senão a constante aprendizagem da moderação das expectativas. Uma vez moderadas, tudo se torna tão mais simples. Com seis anos, sonhava ser astronauta e explorar o espaço, mesmo com as constantes ameaças do meu avô em me deserdar se eu não me tornasse enfermeira de guerra. Nunca cheguei a perceber em que guerra me queria ele, daquela altura recordo os conflitos na Bósnia e a guerra no Golfo, e não percebia para qual delas iria eu nem que propósito teria isso para o meu avô. O certo é que não virei enfermeira de guerra, muito menos astronauta, e acabei na mesma sem herança que se pudesse ver. Lembro-me mais tarde de ver escrito nas portas dos bancos que encerravam às 15h. Achei maravilhoso e convenci-me de que um dia ia querer trabalhar num banco e sair às 15h para ir para a praia. Claro que à época ignorava o tom premonitório de tal ambição, e também o quão errada estava em achar que ia ter um trabalho onde saía às 15h. Mas isso já são outras histórias. Volvidos outros tantos anos, apaixonei-me pelos direitos humanos, pela diplomacia e pelas relações internacionais, e convenci-me de que podia salvar o mundo, trabalhar com refugiados, levar água a aldeias remotas em África, fazer chegar alimentos a crianças famintas, promover discussões acesas em fóruns onde estes temas fossem a ordem do dia. Mais uma vez, a vida condicionou-me totalmente as expectativas que por tanto tempo alimentei. A morte precoce da minha mãe fez de mim e do meu irmão as crianças famintas e sedentas de uma mão que nos salvasse. Mas não, não houve mão que nos salvasse, nem milagre que nos retirasse de um cenário muito provavelmente drástico, não fosse uma vincada resiliência e teimosa vontade de vingar. As mãos que nos salvaram acabaram por ser mesmo as nossas, ao cabo de muitas horas de trabalho precário, mal remunerado, sem benefícios, e dois anos inteiros sem saber o que significavam férias, viagens, lazer. O alimento era a prioridade, tudo o mais era supérfluo. Deste período, poucas relações sobraram. Arriscaria mesmo dizer que os dedos de uma mão são suficientes para contabilizar os amigos que se mantiveram, não obstante a turbulência a que me vi exposta. Ninguém tem paciência para lidar com uma pessoa em luto atribulado, coroada por uma pseudo maternidade assumida em relação ao meu igualmente órfão irmão, e uma total incapacidade financeira de participar em actividades sociais. Não era de facto a amiga mais óbvia, nem a primeira pessoa a quem se lembravam de ligar, invariável que era o meu “não” aos convites recebidos, constante que era o meu desespero pelo futuro ainda por vir, pelas contas por pagar, pela comida que o estômago nunca deixava esquecer. Ainda noutro dia partilhava com um amigo a história - hoje quase engraçada, mas à data sem piada alguma – do dia em que passei fome. Sim, dia no singular, porque foi mesmo só um dia. Um final do mês dramático em que os parcos salários chegaram para as responsabilidades mais imediatas, mas não para aprovisionar dispensa nem frigorífico. Prometi a mim mesma que aquele seria o primeiro, único e último dia em que passaria por uma situação tão limite quanto a de querer comer e não ter poder de compra para o fazer. Mas isso já são lides para outras conversas. E onde é que eu ia mesmo…? Ah, sim, nada como uma boa tragédia de faca e alguidar para ver quem são os amigos dignos desse epíteto, e quem são os que se limitam a figurantes. Assistem sentados e aplaudem, mas não participam. E de figurantes acabam por não passar.


Moral da história? Moderar expectativas é primordial, seja em relação aos amigos que vamos tendo, seja nos romances que vamos alimentando e que invariavelmente falham, seja no trabalho que fazemos, sabido está que estamos longe de salvar o mundo. Contextualizar o que nos acontecesse, agradecer o bom e saber lidar com o mau. Sem esta moderação, seremos incapazes de discernir os momentos que definem a nossa vida, e a sensação pulsante e viva de sermos ou não felizes. E ninguém quer ver turvos esses momentos, aqueles que superam todas as expectativas, das mais humildes às mais arrojadas. É que é nessas alturas, em que a luz é mais clara, os sons mais nítidos, os odores mais apurados, que a felicidade se insurge. E ninguém a quer deixar passar despercebida… pois não?