terça-feira, 7 de março de 2017

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Projecto Saudade @ www.cihancakmak.com


Quando um dia começa mal, já consigo prever mais ou menos onde é que a Lei de Murphy não me vai deixar ficar mal. Hoje não está a ser exceção. Esta manhã, tomava o café em casa do meu namorado, usava uma camisola branca, e pensava como seria irónico se uma gota de café me caísse na camisola, visto que não tinha uma única muda de roupa à mão. Segundos depois lá estava ela, uma nódoa redondinha de café que validava a minha intuição. Enquanto corri para tentar remediar o desastre, ocorreu-me que por ter saído disparada da cozinha, o mais certo era esquecer-me do almoço em casa. Mais uma vez não me enganei, e no meio da correria para não me atrasar, realmente fiquei sem o que almoçar, consegui sair atrasada de casa, e ainda ter um bónus no trânsito, que por ter saído de casa mais tarde, estava infernal. Claro que não podia faltar o elemento “cliente insatisfeito”. Ainda não são 9h da manhã à hora a que escrevo, e já uma cliente enfurecida me pediu o livro de reclamações por causa de um erro de uma máquina de ATM que por segundos lhe ficou indevidamente com dinheiro. “ISTO É INADMISSÍVEL! EXIGO FALAR COM ALGUÉM RESPONSÁVEL!!” Calma, minha senhora, tudo tem remédio nesta vida.

Há dez anos atrás, não senti intuição alguma sobre o quanto a minha vida teria mudado antes sequer de anoitecer. Lembro-me que enquanto tentava chegar ao Santa Maria para visitar a minha mãe antes de baterem as seis, de me ter mentalizado que nesse dia não ia poder visitá-la. Vir de autocarro desde o Museu de Arte Antiga até à Cidade Universitária em plena hora de ponta não era de todo a mais fácil das tarefas, e às seis já eu tinha que estar no maravilhoso call center do Montepio onde ganhava uns míseros quinhentos euros por mês – se é que chegava a tanto! – para ser maltratada por “chefes” pequenas e infelizes com as vidas que levavam, se naquele dia não atingia determinado objectivo nas malditas vendas de produtos.

Uma vida de sonho, portanto.

E foi quando me apercebi que o autocarro nunca chegaria a tempo que peguei no telefone para fazer a primeira chamada difícil daquele dia 5 de Março de 2007. Como não tinha saldo suficiente para ligar para o fixo do hospital – a falta de saldo era por aquela época um problema crónico, tanto ao nível de conta bancária, como de saldo no telemóvel – liguei ao meu primo para lhe pedir que pudesse avisar a minha mãe que eu não a poderia visitar nesse dia. E foi então que fiquei a saber. A minha mãe sucumbira a meses de hospitalização, tubos e privações várias. A segunda chamada penosa que fiz nesse dia foi para o meu irmão, que então contava apenas 17 anos, para lhe dizer que a nossa vida mudara indelével e irremediavelmente, nunca mais seria a mesma, seríamos só eu e ele daí para a frente. Tudo, mas tudo mudou.

Desse dia lembro-me de ter corrido para o hospital, de não ter esperado pelo elevador, de ter galgado as escadas cima até encontrar o corpo inanimado e ainda quente da minha mãe, e de ter chorado compulsivamente, enquanto um qualquer enfermeiro espanhol tentava em vão fazer-me sossegar. Nunca chorei tanto como nesse dia e como nessa noite. Senti um medo do futuro como nunca julguei ser possível. Uma ansiedade medonha que mal me deixava sentir a dor da perda, o que vai ser de nós, como vou cuidar de mim, como vou cuidar do meu irmão? Como é que se vive sem uma mãe que nos aponte o caminho, que nos diga o que é certo e o que é errado?
Nessa noite, enquanto inundava de lágrimas imparáveis a minha pequena almofada, nas poucas vezes em que conseguia raciocinar de forma lúcida, repetia para mim mesma, daqui a dez anos, pensa daqui a dez anos, daqui a dez anos tudo estará melhor.

Dez anos. Dez anos. Dez anos.

E foi sempre a pensar que o dia de hoje chegaria que bem ou mal fui vencendo os pequenos e os grandes obstáculos, e até as dificuldades que pareciam mais inultrapassáveis. Veni, vidi, vici. E este dia finalmente chegou. Mudámos, adaptámo-nos, e tornamo-nos versões de nós mesmos, melhores ou piores, não sei, mas inquestionavelmente diferentes. Pois que ninguém sai ileso da morte tão prematura de um pai ou de uma mãe, especialmente quando aquela é seguida de exercícios duros de sobrevivência, de desilusões, e de um luto sem espaço para seguir o seu curso normal.
O tempo arde, mas cura. E os dez anos finalmente passaram, o dia que lá atrás desejei com tanta força chegou, e nós de cabeça erguida sobrevivemos, e brindamos a memória da nossa mãe, sempre querida, sempre saudosa, sempre lembrada.


Um beijo, mãe*