segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Horário de Inverno



…e que nada nem ninguém é mais importante do que nós próprios. E não devemos negar-nos nenhum prazer, nenhuma experiência, nenhuma satisfação, desculpando-nos com a moral, a religião ou os costumes. 
Marquês de Sade


A hora mudou. Este horário de inverno não mais me permite tactear-te corpo fora e descobrir os teus relevos por entre as roupas da cama escondidos ainda pela escuridão da manhã, pois que logo os primeiros raios das novas horas te põem a descoberto, serena e imperial, à mercê do meu ávido olhar que se quer consumir de tanto de observar. Nunca aprendi a escapar à tua intrincada sedução – nem tão pouco sei se alguma vez o vou querer. A mulher alguma devia ser permitida tamanha lascívia, homem nenhum devia ser sujeito a semelhante tentação. Mas cada molécula de ar que me permites partilhar só a ti pertence, e não é senão um privilégio inspirar esse mesmo ar que a ti te mantém viva, e vivo continuar também eu para te respirar por mais uma noite.

Anoitece mais cedo, mas nem por isso voltas para mim quando o sol se põe. Fazes-me sofrer, sabes tão bem como me fazer mendigar a tua atenção e deixares-me suspenso na adivinhação dos teus próximos passos. Venero-te, sabe-lo como ninguém. E melhor que ninguém, sabes também que me envolves no fumo dos cigarros que para meu deleite fumas noite após noite uns atrás dos outros, pendurada na varanda sem roupas que te vinquem as magnânimas curvas, nem costuras que separem a minha pele da tua. A envolvência dos fumos que preenchem as quatro paredes da alcova, a tua tenacidade em reter o filtro sem nunca perderes a candura como se virgem intocada fosses, como se do mundo nada soubesses, como se de mim não precisasses.

Fuma, fuma só mais um, antes de deixares de vez os teus vícios e manias de gente grande e te abandonares a estes lençóis brancos onde não és mais senão comum mortal como eu, onde o teu ser não mais supera o meu, onde te encontro e te sou igual.

Fuma, fuma só mais um e entrega-te aqui, a mim, agora.


Fuma, fuma só mais um.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Sou qualquer coisa que fui. Não me encontro onde me sinto e se me procuro, não sei quem é que me procura. Um tédio a tudo amolece-me. Sinto-me expulso da minha alma.
Livro do Desassossego por Bernardo Soares

Só o palrear dos grilos acompanha o lusco fusco matinal em que me sento. Acendo um cigarro só pelo prazer de ver o fumo competir com a neblina que se me assenta na pele. Arrepiei-me e tu nem deste conta. Presságio ou não do teu apartamento. Quem sabe? A manhã ameaça já despontar, o relógio parou entre as sete e as oito, e tu desenhas ainda sem parar. Desenha-me outra vez, penso para dentro, enquanto queimo mais um bafo no cigarro. Despi-me das amarras e fui tudo o que nunca alguma vez pensara ser possível. A pessoa mais feliz do mundo, mesmo depois de tudo. Mesmo depois de tudo, a pessoa mais feliz do mundo. Doce privilégio esse, amargo o gosto de quando se evapora a gota última desse elixir que chamam de felicidade. Humedeço os lábios, em te pedindo na penumbra da manhã um último beijo que nos enleve para sempre no chamamento que o destino nos faz. Que fragmento bizarro, esta madrugada abafada e disfarçada de fria. Nunca te sentaste comigo nestes degraus a apreciar a quietude do campo, a inércia da vegetação, a diversidade dos teus verdes. O mundo jaz aqui aos nossos pés, este chão, estas fundações, este pedaço de terra onde nos pertencemos noites sem fim, onde o mundo começa e acaba em nós. Pouso os pés descalços no chão frio e sinto a tua mão descer-me sobre o ombro, a chamar-me para a tua cama. 
Vou já, meu amor. Espera por mim, que vou já, meu amor.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014



“Só há um recanto no universo que estamos certos de poder melhorar, o nosso próprio eu”. 
Aldous Huxley

No meio da música frenética e da pista onde somos inevitavelmente acotoveladas, ela abraçava-me com força enquanto me dizia tu tens tanto. DIZ?, gritei eu confusa, ao que ela repetiu tu tens tanto. E abraçadas ficámos enquanto deixámos a música - cujo amor partilhamos com a mesma intensidade – embalar-nos por mais uns minutos, por mais uma noite, por mais um verão.

Já não estava habituada a ouvir frases deste calibre emocional.

Sempre me dei melhor com o preto das palavras no branco do papel, que com a timbre da minha voz a ressoar naqueles que amo. Escrever é mais fácil, tira-me a sensação de ridículo com que sempre fico quando tenho que dizer a alguém

gosto mesmo de ti.
amo-te mesmo muito.
quero-te mesmo muito. SÓ. PARA. MIM.

Se tenho muito ou não, isso já não sei, não sei senão que penso muito. Muito mesmo, demasiadamente, ao ponto de me doer o tanto que penso as coisas, os sentimentos, o tempo, as dificuldades, as alegrias, a vida em geral, em tudo o que tem de bom e de mau. Lembro-me a esse propósito de um amigo com quem trabalhei em tempos, amigo esse que manifestava sempre a uma determinada hora do dia uma tremenda satisfação, porque o sol ao entrar pela janela lhe batia nos pés, aquecendo-os. Embora compreendesse a dimensão desse regozijo como uma coisa tão normal, de alguma maneira invejava-o ao de leve, por não ser eu própria o tipo de pessoa que se satisfaz com uns minutos de “sol a bater nos pés”. Quando a resignação deixa de constar no nosso dicionário pessoal para dar lugar à obstinação, há uma inevitável tentativa de multiplicação desses momentos em que o “sol nos bate nos pés”. Uma busca que chega a ser cansativa por esses tais momentos em que sentimos que temos tanto. E afinal, todos nós temos tanto. 

É só parar para escutar.

(TU também tens tanto, Verinha querida)*








terça-feira, 14 de outubro de 2014



Toda a vida da alma humana é um movimento na penumbra. Vivemos, num lusco-fusco de consciência, nunca certos com o que somos ou com o que nos supomos ser. Nos melhores de nós vive a vaidade de qualquer coisa, e há um erro cujo ângulo não sabemos. Somos qualquer coisa que se passa no intervalo de um espectáculo; por vezes, por certas portas, entrevemos o que talvez não seja senão cenário. Todo o mundo é confuso, como vozes na noite.
Livro do Desassossego por Bernardo Soares

Deus não se apieda de quem muito ama, de quem ama mais do que pode, de quem dentro tem tanto amor que sente as veias implodirem de não conterem tamanha violência de sentimentos. Pois que toda a vida te tenho vindo a chorar, e que todas as horas te tenho vindo a sofrer, e por todo o tempo te tenho vindo a cantar, e com todas as palavras te tenho vindo a (d)escrever. E em te achando te perco outra vez, para a mim me achar outra vez embriaga do amor que tenho para te dar. Todo, imenso, gota por gota, beijo por beijo, toque por toque. Repito-te, repito-me, vezes sem conta, as vezes que forem precisas para antes desta vida e depois da próxima, me voltares a encontrar, homem ou mulher, e me voltares a deixar amar-te. Triste fado, o dos que amam de mais e de quem Deus não se apieda. Que um coração partido é bom, é sinal de se ter tentado. Eu nunca tentei. Amei apenas, e de apenas amar desamada fiquei, enrodilhada nos meandros vis do sentir, do querer, do olhar sem pestanejar e sem querer um ar que encha os pulmões. Porque no amar não se respira, o corpo tolhe-se das necessidades vitais para se entregar à primeira, última e única necessidade vital, e sem a qual ele não se sustentaria de pé - a de amar. E amando tola, vou-te continuar a amar, e a chorar-te, e a sofrer-te, a cantar-te e a (d)escrever-te, as vezes que forem precisas para que ainda antes desta vida e depois da próxima, me voltes a deixar encontra-te.