domingo, 29 de dezembro de 2013



Açafrão-da-terra, cardamomo, coentro, gengibre, cominho, casca de noz-moscada, cravinho, pimenta canela. 

Como virgens noivas que algum noivo esperem, aguardam o momento em que amassadas no almofariz se hão-de abrir em sabores de outro continente, vendo levado ao expoente máximo todo o seu potencial sensorial. Apertadas umas contra as outras, em caril despertam, retiradas ao sono mole em que se viam até então adormecidas. 

Delicio-me no movimento que os teus lábios desenham enquanto falam encantados sobre especiarias. Encantada me encontro também, pendurada que fico na cadência de cada palavra que reproduzes, e que sempre me sabe a sabores que desconheço. De lacónico pouco tens, e descreves cada sabor e cada aroma como só um ser apaixonado poderia descrever o corpo do amante a que calhe entregar-se. E por distintos que sejam os sons que te oiço, em todo e cada um deles reconheço apenas o sentido da proibição, um instinto pecaminoso que invariavelmente remete para o eterno platonismo de que são feitos os ténues laços que nos prendem. O fumo que te ofereço à boca sabe também ele a interdição, e de to dar a conhecer me contento, por reconhecer como válida cada negativa que impera esta estranha e nunca começada relação. 

Da tua boca pudesse eu provar, e resolver de uma vez por todas esta incógnita que me assola. Saberás a cardamomo ou a café? A fumos ou a canelas distantes? Um sarilho, tu és.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013



Estou me criando. E andar na escuridão completa à procura de nós mesmos é o que fazemos. Dói.
Clarice Lispector in Água Viva

Tive em tempos um alpendre onde me sentava sem pensar para pensar. Ali tomava a primeira refeição do dia, prostrada à imutável beleza do verde, sorvendo apaixonada cada pintalgada sua que calhasse a encher-me de alegria a alma e os sentidos. Ali me sentei muitas vezes para chorar os meus mortos, e me sentei outras tantas para sentir e amar os vivos. Vezes tantas que não as sei contar foram as que ali me encostei com as minhas borboletas. Dias muitos, incontáveis e perpétuos, vivem colados ao mais fundo da minha memória, em que sentia o amor cambalear-se-me embriagado dentro do estômago, bebedeira apaixonada cuja ressaca ainda sinto tolher-me os movimentos. Em me vergar ao viver de uma vida como nunca houvera tido, feliz, doce, plena e transparente, dei por mim enredada em tanto amor, e de tanto amar o amor que sentia amar, em amor me desfiz para não mais me refazer. E desfeita e enfeitada, encetei a mais dura trajectória dos desafectos e das novas afeições.

As borboletas, essas teimam em não levantar voo. Frágeis mas tenazes, agarram-se-me ao estômago com quanta força têm e de lá se recusam a partir, numa maquinal vivência que as mantém reféns de um instinto ao qual não se querem ver presas. A última vez que me sentei no alpendre, de mansinho chorei a perda sofrida enquanto daquele verde me benzia uma última vez, e implorando roguei às borboletas que no alpendre ficassem, que não mais parasitassem dentro de mim, que me deixassem também eu largar o casulo e metamorfosear-me em borboleta, que aliás não sei ser. De borboletas pouco entendo, já de casulos e metamorfoses podia escrever dias a fio sem me faltar o argumento, tão bem que conheço as mecânicas que os norteiam.


A dor quando vive dentro de nós, traça-nos estes caminhos onde não sabemos mais ser dóceis animais. Nem borboletas, nem unicórnios, nem aves primaveris, nem outros que tais. Passamos a ser bestiais feras difíceis de domar, felinos de garras assanhadas, vorazes por fora, feridos por dentro. Aquele que souber amansar o feroz instinto da sobrevivência e sarar os golpes que por tanto tempo sangraram, terá à sua espera o mais perfeito ser que se poderia esperar encontrar nesse misterioso cruzamento entre as garras e as asas, entre os altos voos e as caçadas nocturnas. E de escoriações e de lágrimas não mais se ouvirá falar, senão de risos distribuídos à força desse amor violento, sagaz e tão desejado.

sábado, 21 de dezembro de 2013



As pequenas peças do isqueiro, apertadas umas contra as outras, esgrimem o som metálico que antecipa mais um cigarro. Aceso o vício, oiço o fumo percorrer o caminho que o separa entre os lábios e as paredes dos pulmões, para ser depois expelido corpo fora. Os trejeitos tecidos pela garganta no exercício da sucção e da expulsão ouvem-se à distância. O corpo nu devia ser visível. Mas não é, nunca o foi, nem nunca o há-de ser. Só os sons do fumo acima abaixo acima abaixo são evidência de uma presença mais passageira que o tempo que tentamos agarrar e sempre nos foge. Assim te vestiste de tempo, fugaz e esquivo, e assim me despiste à força das evidências, exposta, despojada, vulnerável. 

A noite que hoje começa é outra. E nela nem tempo que escapa, nem corpos que não se despem, músicas que não se ouvem, contactos que nunca chegam a tocar. E a individualidade que é afinal tão boa. 


quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Gil Dionísio | photo @ Isaac Pereira 2012


Pego no caleidoscópio para te ver mais de perto. Desfaço-te em mil pedaços que hão-de suster-se por todo um dia e toda uma noite no mais alto recanto do meu imaginário. Acordaste heróico e poético hoje, e do meu peito procuro sem descanso exorcizar-te, expurgar cada pegada que me imprimes, cada pedaço da tua derme que vai ficando suspensa na matéria e no nada. E doem-me tanto, mas tanto os teus olhos. De te olhar vivo num arrepio constante, a tua dor acossada à minha, imberbe e serena, como dor que acaba de sair do ventre ensanguentado que pare esta noite.

Do heroísmo e da poesia de que hoje me deste a beber, extraí o mais delicado néctar, para logo a seguir dele te hidratar também. Ousada, insinuarei também um pé descalço, depois o outro, e hei-de seguir até ti os acordes com que me atrai e submete o violino que ora abraças. 

Não me derrames mais esse olhar. Deixa de ser penumbra e faz-te lua cheia, que dela preciso para me alumiar os caminhos. E este dia e esta noite que ainda temos pela frente serão então por fim nossos, seja para sempre, seja para nunca.

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Não conheço a proibição. E minha própria força me libera, essa vida plena que se me transborda. E nada planejo no meu trabalho intuitivo de viver: trabalho com o indireto, o informal e o imprevisto.

Clarice Lispector, in Água Viva



Sei de cor os dias todos, ou quase. O da água, o do gás, o da luz e da internet, da renda, do IMI, do imposto automóvel e dos seguros todos. Raramente sou apanhada na curva, aprendi a ser assim para ver se ia caindo do cavalo menos vezes, como chegou a acontecer umas quantas vezes. Sou matemática, calculista, arrumada no que aos aspectos práticos da vida diz respeito.

Mas quando anoitece, o caso muda de figura. O caos atrai-me, a imprevisibilidade do ser humano tem-me amarrada a olhar para ela como quem antevê um tornado, mas não corre a esconder-se no abrigo. Gosto de me sentir sacudida nas minhas crenças e nos meus preceitos, desafiada pela aleatoriedade que os acontecimentos assumem, aturdida nos caminhos que se vão proporcionando – descalça na maioria das vezes. Porque se durante o dia procuro não me sujeitar ao desconhecido, a noite entrega-me à fúria dos elementos, à impetuosidade carnavalesca que as trevas sempre carregam consigo. 

domingo, 15 de dezembro de 2013



Almiscarada fusão de terra, açúcar mascavado, chuva. Deslizo a caneta pela tua pele, numa esperança vã de marcar o caminho para essa fragrância que me tem refém das manhãs, das tardes, das noites. Prepotência sensorial, essa dependência olfactiva que pesa mais que a invasão do toque, que a pendência do sabor, que a força das palavras, que a intensidade dos olhares. Tudo se resume e encontra nesse erotismo disfarçado de sei lá o quê, de folhas caídas no Outono, de bambus abandonados em cantos de salas, da austeridade dos afectos, das rixas entre o ir e o ficar. Escapo-te como água por entre os dedos, e tu ingénua julgas-te rainha e senhora dos rios e dos mares, que podes afundar embarcações ou resgatá-las ao fundo do mar. Mas não podes. Julgas que podes, mas não sabes que não podes. O teu único poder, é este de me deixares entranhados na palma das mãos esses odores que não se deixam vencer por loções, nem por águas, nem por outras fragrâncias. Valha-nos isso, pois que no instante em que aproximo a mão ao nariz, de novo viajo e me velo aos imperativos do prazer.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013



Subo a Almirante sempre na mesma velocidade. Tenho os sentidos entorpecidos, o corpo violentamente abusado pela dor, as mágoas que foram atiradas ao esquecimento fervilham agora mais do que nunca. Pouco uso dou às dezoito velocidades que a bicicleta me proporciona. Uma velocidade só, sempre a mesma, ainda que os joelhos reclamem, o objectivo é chegar ao destino, com ou sem esforços que seriam desnecessários. Ignoro a quebra de tensão que o corpo me ameaça, desprezo o vómito que se assoma à garganta a cada segundo, e sigo de cabeça erguida, perdida, garganta seca, tanto por gritar e por dizer e por sentir e por doer. Sinto-me tomar de assalto a avenida com uma obstinação que nunca me reconheci. Mais um momento de viragem, em que o peso inteiro do passado me é despejado em cima, deixando claro como água o que tive a mais, mas acima de tudo, o que tive de menos. E de menos não se constroem caminhos. De menos se fragilizam egos, de menos se confundem personalidades, de menos se tinge de cinzento a identidade perdida  no meio de tantas batalhas, tantos afectos distorcidos, tantos amores mal vividos, mal interpretados, mal aproveitados, mal entendidos. Ter criado para mim própria um paradigma de bases tão frágeis não me preparou de todo para aquela que será provavelmente a maior crise de identidade que já atravessei - e que antevi tantas vezes ao longo dos anos. Só não pensei que fosse ser tão crua, física, dolorosa. Perceber quem sou é difícil, e perceber quem quero ser... ainda mais. Mas de uma coisa estou certa: do meu vocabulário, quero retirar o menos, e incluir o mais, MUITO MAIS. Porque como a borboleta luta por sair do casulo, assim estou eu, a deixar uma mórbida cápsula onde me guardei até hoje. HOJE. E só até hoje. Porque amanhã hei-de erguer-me viva e inteira, como se pela primeira vez abrisse ao mundo os olhos.

E tudo vai ser melhor.


Vícios? Vários.

Tomar banho de água a escaldar, até a pele não aguentar mais. Dançar de forma ridícula em cuecas, como jamais seria capaz de fazer em público. Fumar um cigarro quando dispara a ansiedade. Esperar parada na casa de banho que a água do banho se evapore do corpo sem ter que a secar com a toalha. Sentir o frio apoderar-se dos membros por puro masoquismo, na esperança de que este tolhe todas as outras sensações que não quero sentir. Chegar antes da hora a todo o lado. Escrever o que me apetece sem antever consequências. Misturar pessoas de diferentes espectros e observar a inobservância da desconfiança com que invariavelmente tiram medidas mutuamente. Colocar-me em situações das quais podem resultar catástrofes e matutar dias a fio nas possíveis consequências. Comprar sapatos baratos, mesmo sabendo que não vão durar mais do que uma estação, só porque são bonitos. Dormir com um saco de água quente, mesmo sendo a coisa menos sexy do planeta. Exigir demasiado dos outros. Corrigir o português a tudo o que leio. Correr atrás daquilo em que acredito.


Correr atrás daquilo em que acredito?

domingo, 8 de dezembro de 2013

Pronto, pensei, já fomos. Voluntariamente lançados à boca do lobo, que nem se esconde numa toca nem se camufla a olhares indesejados. O lobo ali exposto, visível, de frente à presa que se lhe oferece sem cerimónias nem rituais. Predador, presa, predador, presa. Um vence, o outro sai vencido. O corpo derrotado, destronado na batalha pela superioridade numérica. Dois é melhor que um. Mas se um vence, e não luta nem disputa mais territórios, o outro sai de cabeça baixa, descabelado e ferido, escalpe exposto, a imagem mais fiel que um perdedor pode ter. 


sexta-feira, 6 de dezembro de 2013


Agruras não rima com ternuras. 

E carícias não rima com malícias. 

(Mas rima com delícias, e logo me derreto)

As agruras atiram ao chão, as ternuras ao colchão. 

E se nas carícias vive paixão, das malícias não vem 


senão... Hum.




quarta-feira, 4 de dezembro de 2013



A pouca luz que o vidro da janela deixa passar não deixa adivinhar mais do que uma insinuação do teu desenho. Na parede descubro a projecção da tua sombra, caminho curvilíneo de perdição e viagens sem regresso, onde me deixo ficar suspenso do teu imperativo. Deslizas suave um dedo à boca, entre cortando-o ora à pele, ora à linha insinuante que (in)define os teus lábios. 

Sabe a fumos e a licores, a tua boca. 

Dela bebo vagaroso, perdido na imensidão de sabores e memórias que me traz o gosto da tua boca, pecaminosa e implacável, suavemente perpétua. Insinua-la uma vez mais, como quem finge não saber estar debaixo do olhar de outro. Sabes bem que estou aqui e que te observo, e nem a janela  aberta para a rua ameaça de timidez o teu corpo nu, que tão bem ostentas exibas desfilas como quem não teme o mundo ou a vida.

Provoca-me, sabes que sou oxigenado a fragrância e a luxúria, entrega-te mais uma vez e não feches a janela, deixa-me percorrer-te à sombra da luz que anoitece lá fora.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Lisboa|Sevilha|Amsterdão|Londres|Porto

photo @ Telmo Rocha Silva | Londres 2013

Cidades diferentes.

Os mesmos sentimentos.

Cada rua que confirma um beijo, cada praça que traz de volta uma foto, cada parede que enche de amor o visível, cada palavra que remete para o sentimento que não desaparece. Por muitos caminhos que palmilhe pelas cidades a que me levo, vejo e revejo em cada recanto o sofrer do que já não é, a angustia do que fica por ser. 

Fujo das ruas, das praças, das paredes, das palavras, sem nunca consigo fugir do óbvio. Porque o objecto da minha fuga se tatuou de indelével nas artérias do meu fustigado coração, e cérebro algum inventou ainda um mecanismo dissuasor que permita desmembrar estas tintas em que se pinta o amor. 
Nas cidades não vive a tua memória, senão dentro de mim. E por mais que as calcorreie, é de dentro que sempre se faz o caminho que me leva até aí, onde estás, uma e outra vez. Porque não és a cidade que me rodeia, mas um continente inteiro que (ainda) vive dentro de mim.

O amor, à exaustão o amor. 

domingo, 24 de novembro de 2013



Faz frio em Novembro. A roupa, perdera-a algures entre a cozinha e o palmo e meio de cama onde se aconchegava. O lençol pareceu-lhe trocado com a manta, e a madeira azulada fazia uma estranha combinação com um peça de mobiliário nórdico daquela mesma cor que se recordava de ter visto algures. Lembrava-se de ter adormecido de sorriso assomado, mas não do exacto momento em que acontecera. Um anónimo par de mãos acomodara-lhe as roupas de cama umas duas ou três vezes, onde por fim repousaram também para se entregarem ao sono que antecede um novo dia. 

Isto de adormecer de lábios em riste tem que se lhe diga, pensou. Quero mais.
photo @ Gonzalo Sandoval | India 2012 | http://almayluz.com/


O homem tinha visto sépia a vida toda. Os médicos nunca tinham dado explicação para aquela rara condição, ele tampouco procurara encontrar respostas para além do que já sabia, e que resumia ao cru e despretensioso facto de que via em tons sépia desde que pela primeira vez pousara os olhos nas coisas. Dos olhos sépia e das mãos recortadas de agruras e de lavoura, saiam-lhe desenhos que tinha dificuldade em reconhecer como sendo seus. Sentia-se uma disformidade por não enxergar as cores, como todos os outros. E isso tornava o que tinha dentro num enorme dia cinzento, como se de lá não saísse outra coisa que preto e branco. Que ironicamente era o que invariavelmente acontecia que apostava o carvão contra o branco do papel e rabiscava, rostos, prédios, sentimentos desenhados à exaustão, ao ponto de não distinguir mais as linhas finas dos seus dedos entre os rastos da cinza. A última vez que o vi, armado de lápis e papel, escarafunchava qualquer coisa com violência contra os joelhos, como que buscasse uma resposta para a qual não o vi colocar um ponto de interrogação antes. Nunca mais o vi, acho que nunca mais ninguém o viu.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013


"Leaving is not enough; you must stay gone."
Frida Kahlo para Marty McConnell


Diz-me que não

Não consigo

Diz-me já, com todas as letras, JÁ-NÃO-QUE-RO-ES-TAR-MAIS-CON-TI-GO

Não posso, não consigo, não sei

É no mínimo insensato esperares que eu o faça, se tu próprio és a vítima primeira de uma afasia ridícula que não to permite verbalizar, tampouco concretizar em gestos que não contrariem tudo o que dizes.

Apertaste o corpo contra o meu com violência, não permitindo um milímetro de espaço entre nós.

Sufocaste de beijos sôfregos a minha boca, mal conseguia já respirar.

Velaste-me em cuidados mil, levada ao colo num abraço de uma noite maior que a vida.

Apertaste-me o queixo entre os teus pequenos dedos e repetiste-me à exaustão

Olha para mim

Olha para mim

Olha para mim

Subserviente, olho para ti há tempo demais. Olho para ti desde que a tua presença me desinquietou no meio do alvoroço feliz em que me encontraste um dia, olho para ti desde que o teu carinho me resgatou à mais longa e escura noite em que já dormi, olho para ti desde que o teu desassossego me contagiou irremediavelmente e nunca mais a letargia fez parte do meu vocabulário.

Olho-te, mas não consigo mais prender-me ao fundo dos teus olhos. Porque quando o faço, sempre encontro um trejeito que contraria cada palavra que proferes. E por mais que me apeteça lá ficar, sou obrigada a olhar noutra direcção, para não ver mais verdades nos teus olhos que mentiras na tua boca.

Valesse mais um olhar que se oferece que o som de uma palavra.




segunda-feira, 18 de novembro de 2013



Os pés contorcem-se em reclamações dentro dos sapatos, desabituados que estão deste tipo de apertos. Os joelhos barafustam com a altura a que os pés se encontram do chão, e na base da nuca consigo tocar uma pequena rasta, troféu máximo do desprezo a que o cabelo foi votado durante todo o verão. Segue até agora queimado do sol, tenso, desalinhado. Não fui feita para sapatos altos, nem para viver num aquário. Mas também, quem podia prever que numa fase em que era suposto escolher o caminho a seguir, iríamos mergulhar na mais frustrante e incapacitante crise económica de que há memória?

Se já era difícil fazermos o que queríamos, agora esses sonhos parecem completamente inatingíveis, impossivelmente esquecidos num passado irrecuperável. E a última coisa que me apetece fazer é compor o cabelo, cuidar que as unhas apresentem o verniz adequado, engomar o meu melhor fato (a utilização do substantivo fato nesta fase da narrativa tem apenas o carácter lírico de ilustrar, dado que não tenho nem nunca tive nenhum fato) ou calçar os sapatos menos desconfortáveis que calhar a encontrar lá por casa. Queria sim, confundir cada fio de cabelo de tanta água, de tanto sal, que não mais se consigam destrinçar uns dos outros, quero apagar de sol este branco esquálido e abjecto que se apoderou da minha pele sem aviso prévio, quero pintar as unhas de areia e de sonhos, dez sonhos que ainda não concretizei, e outros dez que ainda hei-de sonhar, quero vestir-me de brisas que aliviem e de ventos que tragam felicidade. E espoliada dos penteados, dos vernizes, dos fatos e dos sapatos, quieta ficar entregue ao beijo de luz que cada lua me traz à alma, pois que nesse momento etéreo saberei de que é feita a felicidade, mais movediça que a areia que tanto gosto de pisar…


domingo, 17 de novembro de 2013

se chorar no banho e as lágrimas não mais se distinguirem da água, conta como choro legítimo?

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

photo @ Anne Arden McDonald www.anneardenmcdonald.com

Noutro dia, dei por mim a ir sozinha ao DocLisboa, e se há poucas coisas que me proponha a fazer sozinha, uma delas é sem dúvida ir ao cinema. O documentário versava sobre a imagem na Coreia do Norte, mas pouco ou nada fiquei a saber sobre o assunto, já que dei por mim a dormir a maior parte do tempo. Era Domingo, cinco da tarde, estava ligeiramente de ressaca e lá tive que ceder e deixar-me dormitar em pleno filme, pese embora fosse um assunto que me interessasse.

A última vez que me lembrava de ter feito algum programa sozinha, foi numa das idas a Londres, e lá me pus a ver o Museu de História Natural… sozinha. Depois de me ter apercebido da dimensão dantesca das salas, decidi começar por arriscar uma sala onde vi uma estátua da Ilha de Páscoa. E pronto, foi isto, dei meia volta e mandei-me para a rua, onde pelo menos entre as pessoas tinha a ilusão de não deambular por minha conta e risco (afinal de contas, ainda bem que não vi o Museu, que este mês volto lá com o meu irmão e sei que nos vamos divertir muito mais a conhecer o Museu juntos).

Esta coisa de andarmos e fazermos coisas sozinhos pode causar estranheza quando durante muitos anos nos habituámos a ter alguém que automaticamente nos acompanhava para todo o lado. Mas o medo da solidão não se deve confundir com a fobia de nós próprios. Todos temos fantasmas, esqueletos no armário cujas portas não gostamos de abrir. E estarmos sozinhos deixa-nos especialmente vulneráveis a todas as coisas que nos amedrontam. Mas estar sozinho não tem que ser necessariamente mau. Antes pelo contrário: se bem aproveitado e compreendido, pode e deve ser um momento de reforço do nosso ego, da nossa força interior, e especialmente, da sã convivência connosco próprios, por muitos fantasmas e esqueletos que possamos encontrar perdidos dentro de nós.

Por mim falo, que passei uma vida inteira a “varrer para debaixo do tapete” tudo que me assustava, tudo que me magoava, tudo que me deixasse frágil, vulnerável, indefesa. E se em muitos momentos, a minha sanidade mental dependeu de me isolar da realidade e em fazer-me acreditar que tudo havia de ficar bem, hoje felizmente já não preciso de me esconder dos piores sentimentos nem de fingir que tudo vai ficar bem. Permito-me sentir a dor quando tenho que a sentir, permito-me chorar a tristeza quando tenho que a chorar, e permito-me especialmente viver a zanga quando assim se impõe.

Hoje tenho o privilégio de poder fazer o que não fiz durante um passado inteiro. Ao invés de contornar as dificuldades tapando os ouvidos e fechando os olhos, abro agora os armários todos e sacudo bem sacudidos os esqueletos. Mas que não se pense que o facto de o fazer voluntária e conscientemente torna a busca mais fácil. Nada mesmo. Perscrutar o que temos dentro não é de todo uma tarefa fácil, quanto mais prazerosa. O bom disto tudo, é que a dada altura se percebe que afinal cá dentro há mais do que armários empoeirados. Há salas cujas portas apetece abrir, cuja luminosidade se quer aproveitar, sentar e desfrutar da vista. Afinal, estar sozinhos connosco próprios é até bom, e não tem que ser nenhum bicho de sete cabeças.

Excepção feita, claro está, a idas solitárias ao cinema que se transformam em sestas por falta de quem nos obrigue a estar acordados. Um desperdício de dinheiro…



terça-feira, 12 de novembro de 2013

Photo @  Ana Ribeiro Lages 2013 Lisboa (vinte&oito)


Perdi o fio à meada. Deixei de contar as dezenas, centenas, milhares de cartas de amor sem carteiro que mas leve que se foram acumulando na minha cabeça a cada segundo que a distância aumenta e só me aperta mais o coração. A última, revia-a mentalmente uma segunda-feira, ainda não eram oito da manhã e já o vinte&oito fazia as honras descendo a Almirante pomposo para em passando a Palma, romper Martim Moniz adentro. Distraída, revia as palavras que se desarrumavam dentro, para logo depois seguirem aleatórias solitárias viagens rumo a nenhures.

Uma silhueta de sexo indefinido assoma-se ao lugar vago que ainda sobra no meu banco. Não olho, não me interessa, não quero saber de mais nada há muito tempo, não me preocupo, não questiono, não refuto. Aceito, espero e rejubilo ante a possibilidade da tormenta virar calmaria. Acenando-me gestos pouco precisos, julgo que a intenção dessa figura é tão só e apenas a de sentar. Desengano-me logo de seguida quando me toca ao de leve no ombro O seu título de transporte, por favor. Quando lhe devolvo o toque com o virar do rosto, não vou a tempo de elevar rápida a mão e secar a última lágrima, herdeira solitária da carta de amor que apenas cruzava os pensamentos daquela manhã. Ele segura-se nela (na lágrima) por alguns segundos, para logo de seguida me deixar em detrimento de um qualquer outro passageiro que por ali deambule àquela hora vespertina, O seu título de transporte, por favor.


Puta de mania essa a de chorar em transportes. E no entanto, estes continuam a ser o melhor sítio do mundo para chorar as cartas de amor que nunca hei-de expedir, que sem destinatário hão-de ficar, pois de mim e de ti não mais se escreverão mais palavras que justifiquem tantas e tantas cartas de amor por entregar. Delas me desfaço em lágrimas que povoam os bancos do vinte&oito, do sessenta, da linha verde e da azul.  

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Não destrinçava com facilidade de onde lhe chegava grande parte do ruído. Se dos autocarros que dias inteiros se atropelavam nas faixas só deles, se das pessoas atabalhoadas e afoitas por um lugar nesses mesmos autocarros, ou se dos pedaços de vidro incontáveis que lhe rebentavam dentro do peito, qual campo minado. A cada passo, um corte no pé, no outro pé, sangue e mais sangue e cortes que não estancam. Como margens de rio, sempre paralelas, sempre lado a lado, sempre sem se tocarem. Nunca, sempre, nunca, sempre. Uma impermanência impiedosa do ímpeto pelo futuro, da procura das respostas, o tudo ou nada que decide uma vida. O saltar do penhasco ou o recolher do corpo e das memórias para o tempo que dura uma eternidade, um espaço infinito de saudade e de ausências composto.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013



O maior passo que dei de forma significativa rumo ao que tenho dentro, foi no dia em que percebi que o meu enorme iceberg ainda estava com apenas 10% de massa à superfície. E toda a gente sabe que os icebergs são um perigo constante à navegação. Mas o erro que cometi logo a seguir e até há bem pouco, foi o de achar que os restantes 90% iam deixar de estar submersos rapidamente.

Errada, claro está.

A chamada ponta do iceberg é mais aguçada do que o desejado, mais do que gosto de admitir. E agora, é deixar fluir um degelo lento, mas progressivo, pois que um dia chegará em que não serei mais gelo, nem 10% de fachada e 90% de verdades ocultas. O passado pesa. Pesa muito, porra. E vem-nos de dentro, de cada órgão, de cada gota de sangue, viral e perigoso, para nos consumir se assim o deixarmos. Não quero explodir-me um dia nas mãos, quero levar-me devagar do presente ao futuro, onde um tempo virá em que será tranquila a existência de um passado. E aí não serei mais réstia de gelo, senão água que corre limpa, rápida, cristalina. 

terça-feira, 5 de novembro de 2013




METADE
Oswaldo Montenegro

Que a força do medo que tenho
Não me impeça de ver o que anseio

Que a morte de tudo em que acredito
Não me tape os ouvidos e a boca
Porque metade de mim é o que eu grito
Mas a outra metade é silêncio.

Que a música que ouço ao longe
Seja linda ainda que tristeza
Que a mulher que eu amo seja para sempre amada
Mesmo que distante
Porque metade de mim é partida
Mas a outra metade é saudade.

Que as palavras que eu falo
Não sejam ouvidas como prece e nem repetidas com fervor
Apenas respeitadas
Como a única coisa que resta a um homem inundado de sentimentos
Porque metade de mim é o que ouço
Mas a outra metade é o que calo.

Que essa minha vontade de ir embora
Se transforme na calma e na paz que eu mereço
Que essa tensão que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada
Porque metade de mim é o que eu penso mas a outra metade é um vulcão.

Que o medo da solidão se afaste, e que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável.

Que o espelho reflicta em meu rosto um doce sorriso
Que eu me lembro ter dado na infância
Por que metade de mim é a lembrança do que fui
A outra metade eu não sei.

Que não seja preciso mais do que uma simples alegria
Para me fazer aquietar o espírito
E que o teu silêncio me fale cada vez mais
Porque metade de mim é abrigo
Mas a outra metade é cansaço.

Que a arte nos aponte uma resposta
Mesmo que ela não saiba
E que ninguém a tente complicar
Porque é preciso simplicidade para fazê-la florescer
Porque metade de mim é plateia
E a outra metade é canção.

E que a minha loucura seja perdoada
Porque metade de mim é amor
E a outra metade também.

terça-feira, 29 de outubro de 2013



“Não fosse o amanhã, que dia agitado hoje seria”, li hoje algures.

Verdade. Tão verdade que dói. Porque se não fosse o medo do amanhã, o receio do depois, o antecipar de todos os riscos e de todos os perigos, a agitação do dia de hoje seria deliciosamente incomensurável. E de todos os beijos que quero beijar, de todos os abraços que quero abraçar, de todas as palavras que quero sussurrar e de todos os aconchegos em que me quero aninhar seria feito o meu dia. E de todo o amor que até agora não dei, com medo da aterradora negativa que sempre se faz omnipresente a cada conversa, a cada redescoberta, a cada partilha de que afinal não se estava à espera. Essa malvada negativa, que assusta mais do que a ausência que já existe, e à qual - mal ou bem - já nos habituámos por força das circunstâncias. Mas o facto de estarmos habituados a uma coisa, não significa de todo que gostemos dela. E por isso, à ausência que habitual se fez não se pode permitir a implantação de raízes. É passageira, temporária, e há-de dar azo a outras presenças, felicidades, momentos partilhados que tanto enchem e aquecem o coração.

A cada dia que passa, sinto-me mais e mais implodir dos beijos que não beijo, dos abraços que não abraço, das palavras que (ainda) não te sussurrei, dos aconchegos a que (ainda) não me permiti. Pois se só hoje houvesse, sem sombra nem ameaça de um amanhã amanhecido, com um toque de lábios calaria as somas e as subtracções, as projecções de risco e todas as aritméticas do sentir. Fazer contas é preciso, mas cansa. Isto quando não nos deixa mesmo esgotados e à beira da exaustão. A minha conta sei de cor qual é, tão simples que é de fazer, tão intensa que é de sentir.

1+1 = 2

Porque não fosse o amanhã, que dia agitado hoje seria…

quinta-feira, 24 de outubro de 2013




Ar dentro.

Ar fora.

Ardentroarforaardentro.

Fecho os olhos, e dou-me uma oportunidade mais de tentar encher os pulmões de ar. O espaço que devia ter dentro está demasiado ocupado de memórias, de fotografias rasgadas, músicas ouvidas pela metade, refeições que acabam com todos os pratos e todos os copos partidos pelo chão. Um força aleatória de ar é por fim bem sucedida em explodir em vida nos meus pulmões, que tanto dela precisam para me oxigenarem o coração, para me oxigenarem o pensamento. No purgatório que é todo este ritual, nunca sei quando será a última ou a próxima vez em que conseguirei fazer com que o meu corpo respire, em que a matéria reaja. A cada tentativa, temo ou anseio que seja a última vez que me sinto insuflar. Porque nunca como desta vez o corpo havia caminhado a par e passo com a mente. E agora tudo dói, o ar que não circula, o coração que se contrai, os olhos que se fecham com violência. Sei o que me falta para esfaquear este elefante que acampou no meio do salão. Sei, e tremo de o saber. A verdade é crua de mais, e o meu corpo fraco de mais para a abraçar uma vez mais. Desvelado o deixo, intimamente desejando que as águas desta chuva interminável o sorvam gota a gota, para dele não mais haver rasto que o denuncie

domingo, 20 de outubro de 2013


The business of life is the acquisition of memories. In the end, that's all there is.
Mr. Carson, Downton Abbey

Sempre que confeccionava um prato novo, uma sofrida antecipação em ansiar a tua aprovação, o garfo mais exigente que já me passou pelas mãos. Na descoberta de uma série nova que valesse muito a pena, a excitação de a partilhar contigo, quando tu muito provavelmente já tinhas chegado ao terceiro ou quarto episódio. E a cada pequena vitória ou a cada grande conquista, uma vontade louca de dividir contigo essas alegrias de que se faziam alguns dias. Guerrilhas eternas em torno das refeições, porque a tosta de frango já soava a repetido, e a salada de polvo talvez fosse um acto negligentemente heróico para primeira refeição do dia. "Levo casaco? Achas que vou ter frio? Levo gorro? Ténis ou chinelos? Esta camisola ou antes aquela?" Não sei, despacha-te, que o que mais quero é ir apanhar sol! Mas bem lá no fundo, deliciar-me dessas indecisões que te faziam dependente da minha opinião, afinal tão importante no frio que ias sentir ou se devias ou não tapar a cabeça com o tal do gorro. Incontáveis os beijos que perdia para os mais que muitos esquissos espalhados pela casa, ou para as letras que escrevias hipnotizado em frente ao teu adorado Mac. Mas cada beijo não recebido valia a pena, pois desses beijos que deixámos suspensos no tempo, se construiu um dia atrás do outro uma admiração por um lado artístico tão inevitavelmente atraente, tão irremediavelmente viciante.

E é destas aquisições de memórias - umas certamente mais relevantes e úteis que outras - que se alimenta um sentimento quando se ama alguém. E são também estas memórias que nos tolhem o discernimento quando o que está em causa é um processo de esquecimento do qual depende a nossa sobrevivência, o manter a cabeça à tona da água. Tudo, mas tudo se complica, quando se confunde a alimentação desse sentimento, com o amor às memórias do que se viveu. 

E no fim de contas, o que prevalece afinal? Será o amor, ou será a força atroz das memórias, que num movimento centrípeto e quase impossível de contrariar, não nos deixam delas escapar? Porque como diz o Carson, e bem... In the end, that's all there is.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Ego(s)

Photo @  Ana Ribeiro Lages 2013 Sevilha

Esfreguei a minha pele com quanta força tinha. Calquei-a forte contra o chão, raspei-a com violência contra as paredes, sangrei-a sem dó nem piedade em arestas afiadas. Queria arrancar a pele tua que resistia ainda na minha. Queria rasgar-te para fora de mim, desventrar-te das minhas entranhas e desfeita ficar, mas só eu, sem artes nem manhas, nem facas afiadas para me apunhalarem. Sim, apunhalarem, que do amor tantas vezes se faz sangue, vísceras são expostas, interiores são revolvidos para nunca mais voltarem a ser o que sempre eram. Das palavras fazer vento, e não as deixar entrar pelas brechas e chegarem fundo, onde alegram e fazem doer. E do vento não respirar uma molécula só, que à mínima falência do espírito, e juro ser capaz de me desfazer no calor do teu colo, e de lá não mais acordar para o que uma vez fui. Vi-te esfumaçares-te entre os pós da praia, vi-te bebido em tantos copos em noites que não acabavam mais, vi-te fumado nos incontáveis cigarros das tardes aflitas. E depois de te ver e fazer desaparecer tantas e tantas vezes, degolas-me uma vez mais sem sombra de misericórdia que te tolde o olhar. Frio, egoísta, ditatorial. E eu, escrava desses pesares de amor de que me arrasto, vergo-me ante tamanha violência, destemida que sou também eu. Se me tocas com um dedo só, desfaço-me. Sem promessas que das cinzas venha a renascer, entrego nas tuas mãos o condão de me encontrares. Não sou anjo nem fada, tenho costas e de asas nunca ouvi falar. Sombra também tenho, deixo-a por onde passo em Lisboa quando passo, entre um ponto e o outro. Segue o meu rasto, hei-de lá estar.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Quando o motivo me encontrar,
vou pensar em assentar,
fazer a roda girar
despir, beber , fumar
Só mais um gole, só mais um bafo                                     (sim, outra vez)
E sem embaraço, cair num desabafo do teu abraço.


photo @ JP.Fernandes notaloneinmybrain

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Cards on the table
We're both showing hearts
Risking it all though it's hard
All of me, John Legend



photo @ Clickt 2013 | www.clickt.com.pt
A vida inteira esperei por ti. Sabia que de uma maneira ou de outra, caminhávamos trágica e irremediavelmente na mesma direcção, todos os segundos, minutos, horas, todo o tempo. Sempre na direcção um do outro, em inevitável rota de colisão. Um trajecto que nos faria explodir um contra o outro para não mais nos reconhecermos como eu nem como tu, mas como uma matéria só, inextricável, una e perfeita. Verdades há que o destino demora a desvendar, evidências que demora a entregar a quem de direito. Mas quando dessas evidências se cumprem premissas com que sonhámos em cada acordar e a cada adormecer, nada mais importa. Nenhuma mágoa, nenhuma desilusão, nenhum desapontamento. Nem os beijos que ficaram por beijar, nem os abraços por abraçar. Desfazem-se as ansiedades numa melancolia recíproca, e enrolados um no outro ficamos quietos e em paz, sabendo que do amor que hoje vivemos, amanhã nos havemos de multiplicar, plenos, realizados, felizes.

sábado, 12 de outubro de 2013

Leu, releu e voltou a ler, mil vezes as quinze palavras, arrumadinhas umas atrás das outras, enigmáticas, provocantes, delicodoces. Memorizou-as uma a uma, a vírgula e o ponto final.

Às vezes, passo aqui na tua rua só para te dizer um olá em segredo.

Às vezes, passo aqui na tua rua só para te dizer um olá em segredo.

Às vezes, passo aqui na tua rua só para te dizer um olá em segredo.

E riu-se por dentro ante tamanha ironia. Quantas vezes ficara ela própria prostrada na varanda, por companhia a ponte e o Cristo. Quantas vezes ficara ela própria sentida na varanda, na esperança de o ver passar para lhe dizer um olá.

E afinal ele passava, e ela sem saber. 
E afinal ela esperava, e ele sem querer saber.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

photo @ JP.Fernandes notaloneinmybrain
Acendo mais um cigarro enquanto penso em ti mais uma vez e no contraste intrigante que é o meu corpo e o teu emaranhados um no outro. Tenho o teu cheiro entranhado na pele e por muitas voltas que dê, não consigo sentir o cheiro que é o meu. Só o teu, denso e calcado fundo. Nem o fumo do cigarro que se desfaz entre os meus dedos se lhe sobrepõe, qual soberania de odores à qual não consigo ficar imune.


As palavras que te colocaram na boca, despeja-las com mestria em cada ponto do meu pescoço, ponto de partida indelével para os centímetros mais que se adivinham. Ciente dessa falsa magia em que julgas que me envolves, visto-me de ingenuidade enquanto me despes subtil e obstinada, numa delicadeza que só os corpos tinge, sem nunca chegar a ameaçar verdadeiramente os sentimentos. De pedra revesti as batidas, o sangue, as artérias e todos os componentes do coração que tenho dentro. Um intrincado sistema de defesa, difícil de desarmar, impossível de ludibriar, mas cheio de falhas na iminência de explodirem nas mãos de quem as ousar perscrutar

quarta-feira, 2 de outubro de 2013


Fosse eu Rei do Mundo, 
baixava uma lei: 
Mãe não morre nunca, 
mãe ficará sempre 
junto de seu filho 
e ele, velho embora, 
será pequenino 
feito grão de milho. 

Carlos Drummond de Andrade, 
'Lição de Coisas'




Aquele nó inextricável na garganta, que já conheço melhor que ao sangue que me corre nas veias. Esse, não sei que alguma vez o hei-de chegar a conhecer verdadeiramente. Não agora, que já não estás cá. 

Mas o nó na garganta conheço-o de trás para a frente.

Um nó que inevitavelmente me traz lágrimas aos olhos, para depois caírem num colo onde nunca secam. Um colo que já não tem colo onde cair. Nunca teve. E num destes dias, do nó se fizeram lágrimas outra vez. E já tinha passado muito tempo, talvez tempo demais, desde que tinha deixado cair estas lágrimas por ti. Foi quando o percebi que me entreguei às evidências e me permiti o choro que andava a calar há tanto tempo.  Porque já são mais os dias que passam sem que pense em ti e na saudade que deixaste, do que os dias que sofro por não te ter para abraçar, para rir e para me zangar. 

Sim, para me zangar. 

Que de me ter zangado tão poucas vezes contigo, hoje zango-me muitas vezes comigo, e com pessoas que não te conhecem de lado nenhum e nem sabem que me zango com elas por me ter zangado tão pouco contigo. Confuso? Pois, também achei quando mo explicaram. Mas afinal fazia todo o sentido. Porque há zangas que é preciso ter, e eu que nunca me quis zangar contigo, mãe, nunca. Sempre te quis protegida, amada, cuidada, feliz. E zanguei-me tão, mas tão pouco... 

E chorei porque achei triste já não pensar em ti tantas vezes. Deve ser mais um dos meus automáticos mecanismos de defesa, desses em que já sou mestra desde que aprendi o que era o sofrer e sobre os quais podia dar prestigiadas palestras sem tremer a voz uma vez que fosse. 

Mas a vida tem maneira estranhas de te trazer até mim de vez em quando. E hoje, um like numa foto minha e tua despoletou uma adorável corrente de beijinhos, abraços e corações de que não estava à espera. E em cada um deles, senti um beijo teu, um abraço teu, o teu coração colado ao meu. Como se de alguma maneira me gritasses 

estou aqui, não te esqueças de pensar em mim

Eu NUNCA hei-de deixar de pensar em ti, mãe. Só não posso prometer fazê-lo todos os dias. Porque mesmo passados seis anos, continuas a doer-me, e ainda não consigo vislumbrar um dia em que a tua partida venha a ser apenas mais uma das muitas pedras que já conto no caminho. 

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

photo @ JP.Fernandes notaloneinmybrain

In waves the ships have all sailed to the sea
Well do you wanna wait or leave with me tonight
Cross your heart and pray the ocean will take us all the way in...

Deftones, Bloody Cape

Uma deriva sem amarras nem portos, sem faróis nem faroleiros. Tempestades, trovoadas, vendavais, cascos furiosamente postos à prova, velas rasgadas, corpos jogados ao chão. Que há mais marés que marinheiros, dizem-me. Que da tormenta se faz calma. Rendo-me ao porão e atiro-me para o meio de caixotes de madeira putrefacta que por lá deslizam, rendidos que estão ao capricho da maré alta e revolta que agita este barco, sem rei nem roque, nem capitão que o leve a bom porto. As falhas rasgam-me a pele, cortam-me os pés, devoram-me o corpo e revolvem-me por dentro o que não consigo curar por fora. Desfeita de madeira, recolho os destroços de mim mesma e lanço-os borda fora. Que hão-de dar à costa numa praia qualquer onde tu vais estar, para que os recolhas e os engulas um a um, garganta abaixo, e que neles a faringe e a laringe se te cortem e te sangrem e saibas por fim que a mar salgado não sabe o amor que não se dá, mas tão só e apenas a sangue.


terça-feira, 24 de setembro de 2013

Hoje podia jurar ter-te visto por duas vezes. Numa delas, pedalavas a 24 de Julho num corpo esguio e seco que não era o teu, envergando um blazer vintage em tons claros que jamais te imaginaria usar. Mas a barba, os óculos, as linhas perfeitas do rosto eram todos teus. Mais tarde passeavas-te ali para os lados da Madragoa, Rua das Trinas, não me falhe a memória. Distinto, aprumado, decidido. Não te reconheci nas atitudes, mas o corte, um trejeito ou outro e o movimento das mãos eram todos teus.

Dias há em que desapareces. Dias que encho de areia e de mar, de neblinas e de espuma, e como que encandeada do sol, não te desvendo mais nas esquinas nem nos cafés nem no meio da multidão. Outros de tal ordem são, que repetidamente levo os olhos na mesma direcção, forçando-me num acto de masoquismo a assumir que não és tu que estás lá, nem uma sombra de ti, nem sequer alguém parecido contigo. São meras reminiscência que a minha memória vai insistindo em projectar aqui e ali, maldosamente lembrando-me que ainda vives dentro de mim. 

Até quando, pergunto-me.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

photo @ Clickt 2013 | www.clickt.com.pt

A música já tocava cá dentro ainda antes de me reconhecer como gente. A minha mãe contava-me a história de como só descobriu estar grávida num concerto, em que aparentemente terei começado a pontapeá-la, como que reclamando um espaço cá fora onde também eu pudesse sentir a actuação que estava a perder escondida dentro da sua barriga. O violino acompanhava-me para todo o lado praticamente desde os primeiros passos titubeantes, e quando comecei a deslindar-lhe todas as manhas, todos os segredos, nunca mais o larguei. Em cada acorde, descobria mais sobre mim e sobre o que tenho dentro. E quando se envereda numa descoberta desta dimensão, dificilmente se consegue voltar atrás. A profundidade de nós próprios tem mais que se lhe diga do que julgo que a maioria de nós terá capacidade de compreender. Quando se vive atormentado com perguntas para as quais nem sempre há resposta, o mundo assume uma complexidade que ora seduz, ora repulsa, consoante as perguntas fiquem ou não por responder. Nessas alturas, penso que gostava de me questionar menos, de ser menos exigente, menos curiosa, menos sedenta de vida. Aqui, vem-me sempre à memória o de poeta e louco, todos temos um pouco. A poder escolher, tomara eu ser menos poeta e mais louca, alheia aos pontos de interrogação que me pairam sobre a cabeça. Não havendo remédio que trate destas maleitas, agarrada ao violino continuo a demanda, na esperança de um dia ter mais respostas, e menos perguntas. 

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Os nómadas da praia



Dias que viram noites que viram dias que viram noites.

A linha entre uns e outros é ténue, quando não calha a ser nula. E se não sei onde uns começam, menos ainda sei onde os outros acabam. A horda de seguidores, sôfregos e extravagantes, dá corpo a um séquito de cores, sal, areia e sol, qual corte andrajosa, unida no propósito comum de não deixar por mãos alheias um segundo só deste estio que se lhes oferece em tom provocatório. Despidos os clichés, veste-se o corpo de música, de fumo, de vinho ou desse orvalho nocturno de que também se faz um verão. Aquecido o espírito, pés descalços ao caminho e acende-se o rastilho à entrega. Porque a música fala mais alto, remisturando molécula a molécula a matéria para a enlevar em acordes profanos que sem pudor se entranham na pele, no sangue, no suor, nos odores. 

Deitados no chão, pregamos todos os olhos no céu à espera da chuva de estrelas que se promete para hoje. Como se de chuvas e de estrelas todos nós precisássemos, almejo colectivo de novidade, de cósmico, de espaço e de fantasias.


Verga-se o corpo ao castigo, para logo a seguir o ver empurrado para parte incerta, para uma dimensão onde os dias viram noites que viram dias que logo de seguida viram noites. Nos pés, sempre uma areia que teima em não largar, no corpo um sal que sazonalmente se agarra e que só abala quando estiverem para cair as primeiras folhas do outono. 

Porque até lá, somos os nómadas da praia. De areia e sal nos fazemos, sem ponto de partida nem ponto de chegada, entregues que estamos ao capricho dos elementos.

domingo, 11 de agosto de 2013

Enquanto descia entorpecida(s) as escadas do teu prédio obscuro, não pude evitar uma viagem ao imaginário da minha infância, onde sonhava com prédios de escadas tímidas de madeira, corrimões enferrujados pelo bafejo do tempo, fachadas decrépitas, sapateiros enrugados de portas abertas no rés-do-chão. Saindo porta fora, abre-se-nos um dos bairros mais apelativos de Lisboa, esse capricho chamado Príncipe Real. Enquanto procurava não derreter no caminho até ao carro com os quase quarenta graus que se faziam sentir, uma panóplia de galerias de arte, lojas de rua centenárias, ateliers repletos de trajes apetecíveis, e velhos e novos rua acima, rua abaixo, uns deliciados, outros indiferentes.

Lisboa tem este poder de se me entranhar debaixo da pele, e dias há em que parece que a vejo pela primeira vez, de amor renovado e incondicional entrega. No caminho para casa, pergunto-me se alguma vez terei a coragem necessária de deixar esta cidade que me remexe tanto por dentro. Evito pensar nisso para já visto não ser necessário, e uma colina após a outra, chego a casa de sorriso nos lábios, mais apaixonada que nunca.