segunda-feira, 29 de junho de 2015


Há metafísica bastante em não pensar em nada. 


A frase persistia em andar-lhe nos pensamentos ia para dias, não sabia porquê. Talvez porque desejasse simplesmente não pensar em nada. Fosse porque dava trabalho, fosse porque às vezes doía, sempre uma remota memória das coisas más que marcam. No exercício inglório de tentar vetar a cadência aos pensamentos, distraía-se movendo os dedos pela pele despida, entre o espaço que ia do osso firme da sua anca à derme suave que anunciava um princípio de seio. Sentia-se desejada e desejável, ciente do poder de abstracção que os seus dedos imprimiam em contornando as formas irregulares do seu corpo. Assim despidos sobre a cama, os corpos apresentam complexidade menor que a metafísica do em nada pensar. Despojados de amores e de ambições, tolhidos de esperanças ou de futuros, caminhando juntos para coisa nenhuma. A beleza que há em nada querer, em nada crer. Nada se querendo, tudo é muito, e em nada crendo, o peso dos dogmas é tanto como o de uma pluma. De tábuas rasas de compõem os dias.



Procrastinando o banho que a espera, prolonga-lhe o cheiro da pele que ele teima em lhe roubar. Lembrou-se que o dia mais longo do ano era aquele mesmo domingo, o dia em que exactamente às 17h38 as tardes mornas da primavera cediam lugar às tardes proibitivas de verão. Pensou no solstício e em quanta poesia ingrata cabia numa cama vazia no dia mais longo do ano. A vida cheia de paralelismos, e ela sempre tentando encontrar ligações entre os pontos, como quem une constelações em observando céus estrelados nos Verões da vida. Recordava a noite em que tinham soltado uma luz esvoaçante em direcção ao breu da noite, e em quanto de intenções nela tinha depositado, as esperanças que havia semeado naquele lugar. Tudo fumo, tudo pó. Sobravam apenas os corpos sem roupa, sobrava apenas a cama sem lençóis.

domingo, 14 de junho de 2015

histórias de amor em dias de chuva



Tanto ele como ela têm já mais de oitenta anos. Oitenta redondos anos. Conheço-os há uns três anos, vejo-os aqui e ali no espaço dos meses, mas só desta vez me sobraram uns minutos no meio da correria para escutá-los e observar a ternura que ainda se dedicam todos os dias. 

Enquanto me contavam a história que os une há mais de cinquenta anos, ela olhava para ele enternecida, ele passava-lhe a mão pelas costas no maior carinho que alguma vez tive o privilégio de presenciar. Ele tinha ficado dez anos em Moçambique a fazer investigação forense, ela casara-se aos vinte e um em Portugal e trabalhava numa fábrica de nylons. Mas aos trinta, uma fatalidade deixava-a viúva. E eu senti que tinha que correr para Portugal, ela estava à minha espera, disse-me ele de sorriso rasgado, como se nessa intuição conseguisse prever uma vida inteira ao lado dela. E não se enganou. Quando chegou, conheceu-a numa paragem de autocarro, e como quem compra um bilhete só de ida, apaixonou-se à primeira vista. E não se largaram mais, por mais de cinquenta anos, até aos dias de hoje. Faziam anos de casados nesse dia, 12 de Junho - fintámos o Santo António, sorriram - e tinham ido almoçar juntos ao mesmo restaurante de sempre. Embevecida, senti os olhos humedecerem-se-me na emoção de ouvir uma história assim. 

Despedi-me de ambos com os dois beijos do costume, e vi-os seguirem de mãos dadas como de costume, iam passar o resto da tarde juntos, como de costume. E nesse momento percebi que nunca tinha conhecido ninguém tão apaixonado, nem que assim tivesse permanecido durante tanto, mas tanto tempo. 

Porra, o amor.

quarta-feira, 3 de junho de 2015




Não quero viver numa casa em tons pastel, com toques subtis a cada esquina nem recantos de onde não quero sair nunca. Não quero viver numa casa amarela, cheia de sol para me alimentar a alma de coisas boas e esperanças concretizadas. Não quero viver numa casa azul, de mar e céu onde me posso perder sem nunca ter de fugir de mim nem dos outros. Não quero viver numa casa branca, onde reine a quietude e a certeza da paz conquistada. Não quero viver numa casa vermelha, cheia de amor e de promessas cumpridas. Não quero viver numa casa laranja, cheia de sorrisos e de crianças eufóricas em constante correria.

Não.

Quero tão só e apenas viver numa casa sem tecto nem chão nem paredes nem cores. Uma casa erguida de beijos e pintada de abraços teus, de ternuras infinitas e afectos desmedidos e paixão a perder de vista. Uma casa onde não falte nem sol nem mar nem céu nem paz para nos embalar nas noites melosas da Primavera, nas tardes preguiçosas do Outono. E se do alpendre dessa casa a minha vista puder alcançar os campos e o mar e o quanto de amor que neles cabe, saberei então que olhando para ti me vejo a mim, e que em olhares para mim te achas a ti. E que quem dessas riquezas se alimenta e vive, de bem algum precisa para ser completo e uno.

Assim sonhei um dia, todos os dias.