terça-feira, 7 de março de 2017

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Projecto Saudade @ www.cihancakmak.com


Quando um dia começa mal, já consigo prever mais ou menos onde é que a Lei de Murphy não me vai deixar ficar mal. Hoje não está a ser exceção. Esta manhã, tomava o café em casa do meu namorado, usava uma camisola branca, e pensava como seria irónico se uma gota de café me caísse na camisola, visto que não tinha uma única muda de roupa à mão. Segundos depois lá estava ela, uma nódoa redondinha de café que validava a minha intuição. Enquanto corri para tentar remediar o desastre, ocorreu-me que por ter saído disparada da cozinha, o mais certo era esquecer-me do almoço em casa. Mais uma vez não me enganei, e no meio da correria para não me atrasar, realmente fiquei sem o que almoçar, consegui sair atrasada de casa, e ainda ter um bónus no trânsito, que por ter saído de casa mais tarde, estava infernal. Claro que não podia faltar o elemento “cliente insatisfeito”. Ainda não são 9h da manhã à hora a que escrevo, e já uma cliente enfurecida me pediu o livro de reclamações por causa de um erro de uma máquina de ATM que por segundos lhe ficou indevidamente com dinheiro. “ISTO É INADMISSÍVEL! EXIGO FALAR COM ALGUÉM RESPONSÁVEL!!” Calma, minha senhora, tudo tem remédio nesta vida.

Há dez anos atrás, não senti intuição alguma sobre o quanto a minha vida teria mudado antes sequer de anoitecer. Lembro-me que enquanto tentava chegar ao Santa Maria para visitar a minha mãe antes de baterem as seis, de me ter mentalizado que nesse dia não ia poder visitá-la. Vir de autocarro desde o Museu de Arte Antiga até à Cidade Universitária em plena hora de ponta não era de todo a mais fácil das tarefas, e às seis já eu tinha que estar no maravilhoso call center do Montepio onde ganhava uns míseros quinhentos euros por mês – se é que chegava a tanto! – para ser maltratada por “chefes” pequenas e infelizes com as vidas que levavam, se naquele dia não atingia determinado objectivo nas malditas vendas de produtos.

Uma vida de sonho, portanto.

E foi quando me apercebi que o autocarro nunca chegaria a tempo que peguei no telefone para fazer a primeira chamada difícil daquele dia 5 de Março de 2007. Como não tinha saldo suficiente para ligar para o fixo do hospital – a falta de saldo era por aquela época um problema crónico, tanto ao nível de conta bancária, como de saldo no telemóvel – liguei ao meu primo para lhe pedir que pudesse avisar a minha mãe que eu não a poderia visitar nesse dia. E foi então que fiquei a saber. A minha mãe sucumbira a meses de hospitalização, tubos e privações várias. A segunda chamada penosa que fiz nesse dia foi para o meu irmão, que então contava apenas 17 anos, para lhe dizer que a nossa vida mudara indelével e irremediavelmente, nunca mais seria a mesma, seríamos só eu e ele daí para a frente. Tudo, mas tudo mudou.

Desse dia lembro-me de ter corrido para o hospital, de não ter esperado pelo elevador, de ter galgado as escadas cima até encontrar o corpo inanimado e ainda quente da minha mãe, e de ter chorado compulsivamente, enquanto um qualquer enfermeiro espanhol tentava em vão fazer-me sossegar. Nunca chorei tanto como nesse dia e como nessa noite. Senti um medo do futuro como nunca julguei ser possível. Uma ansiedade medonha que mal me deixava sentir a dor da perda, o que vai ser de nós, como vou cuidar de mim, como vou cuidar do meu irmão? Como é que se vive sem uma mãe que nos aponte o caminho, que nos diga o que é certo e o que é errado?
Nessa noite, enquanto inundava de lágrimas imparáveis a minha pequena almofada, nas poucas vezes em que conseguia raciocinar de forma lúcida, repetia para mim mesma, daqui a dez anos, pensa daqui a dez anos, daqui a dez anos tudo estará melhor.

Dez anos. Dez anos. Dez anos.

E foi sempre a pensar que o dia de hoje chegaria que bem ou mal fui vencendo os pequenos e os grandes obstáculos, e até as dificuldades que pareciam mais inultrapassáveis. Veni, vidi, vici. E este dia finalmente chegou. Mudámos, adaptámo-nos, e tornamo-nos versões de nós mesmos, melhores ou piores, não sei, mas inquestionavelmente diferentes. Pois que ninguém sai ileso da morte tão prematura de um pai ou de uma mãe, especialmente quando aquela é seguida de exercícios duros de sobrevivência, de desilusões, e de um luto sem espaço para seguir o seu curso normal.
O tempo arde, mas cura. E os dez anos finalmente passaram, o dia que lá atrás desejei com tanta força chegou, e nós de cabeça erguida sobrevivemos, e brindamos a memória da nossa mãe, sempre querida, sempre saudosa, sempre lembrada.


Um beijo, mãe*

quinta-feira, 14 de abril de 2016

X



Entretanto, terão passado dez anos. Dez longos anos. Alguma vez pensaste que dez anos passariam assim num ápice? Porra. Dez. 

Lembro-me bem das primeiras horas e dos primeiros dias em que a nossa vida nunca mais foi a mesma. Respirar doía, abrir os olhos doía, sair da cama doía. Esmagada de dor e de pesar, o que mais desejava era que o tempo voasse, que passassem rápido os anos e levassem com eles a saudade dos abraços que nunca mais abraçámos, dos beijos que não mais beijámos, as chegadas a casa que não mais aconteceram, os sorrisos e até as lágrimas. Tudo, até o mais negligente do amor que dela recebemos. E ei-lo que passou, lento nas horas dolorosas, sempre veloz nos tempos mais felizes. Mas passou finalmente, e com ele levou o choro fácil, a raiva sentida, a sensação latente de abandono de cada vez que alguma coisa corre menos bem, que o chão onde caminhamos é mais tremido, ou sempre que apetece correr para um colo que nos acalme. 

Nos últimos anos, tenho-me esquecido de me lembrar da data. Nos primeiros, o peito fechava-se-me sobre si próprio, não conseguia levar ar aos pulmões, as costas desfeitas de dores somatizadas. Sofria antes, durante e depois. Sofria cada vez que precisava dela, de lhe ligar, e não mais podia fazê-lo. Os anos trouxeram por fim um esquecimento repleto de alívio, e isento de culpas. Não mais sofri o antes, o durante nem o depois do aniversário da morte dela. Passou a ser um dia que passa por mim como tantos outros, um dia sem peito apertado e sem falta de ar. Prefiro agora lembrá-la nos outros dias normais, dias em que não temos que assinalar o teu último respirar neste mundo onde nos deixaste. Lembro-me dela e embalo com carinho e saudade a sua memória. Não sofro mais a sua ausência, senão uma saudade que nunca vai deixar de existir, enquanto dentro de mim houver coração que sinta, e um cérebro que pense. 

E assim se passaram quase dez anos. 

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Quando o medo te é uma palavra estranha


Gostas de acreditar que és forte, que medos tens poucos, que o que já passaste faz de ti resistente ao tudo que há de vir. Mas dás por ti sozinha sentada num corredor onde esperas a tua vez para seres testada, que nem um rato num laboratório. Uma amostra disto, um exame daquilo. Ao teu lado, alguém fala sobre massas de 17 centímetros, sobre cirurgias e exames cujos nomes nem arriscas pronunciar. A miúda sentada ao teu lado não terá mais de 15 anos e discute temas difíceis com a mulher de meia idade que a acompanha. Não se lhe notam preocupações ou medos, como se uma estranha invencibilidade tomasse conta dela. Sentes os pêlos do teu braço eriçarem-se e sabes que não é do frio cortante que faz lá fora, tão pouco da música boa que ouves nos teus fones. O arrepio que sentes chama-se medo, uma sensação irracional por não saberes o que te vão dizer depois de te testarem. É inevitável pores em perspectiva o que fazes com o teu tempo, como ages com os outros, o quanto de generosidade ou frieza que pões nos teus atos naqueles dias normais em que a incerteza não paira sobre a tua cabeça. A luz imensa do corredor encandeia-te além do razoável, e tudo o que querias era que a luz se apagasse e uma mão segurasse a tua e te dissesse que está tudo bem. Tudo o que querias era que alguém te repetisse que és perfeita e te secasse a lágrima que ameaça saltar do teu olho a qualquer momento. Relativizas tudo e pensas uma e outra vez se tens amado o suficiente, se te tens deixado cuidar, se a pressa dos teus dias não te deixou mais fria e mais só, ao ponto da tua autonomia começar a fazer todo e o único sentido. Anseias sair para a rua e engolir um cigarro que camufle a tua ansiedade e o teu medo das coisas que ainda não sabes. Percebes então que estavas enganada o tempo todo sobre a tua total tolerância aos medos, pois não tens a teu lado a mão que tanto querias a segurar a tua, nem o peito que apoia a tua cabeça trémula. Sentes-te pequena, indefesa e desamparada. Até que ao fim de uma melindrosa espera chamam por fim o teu nome. Despes-te numa sala cheia de máquinas frias e és mais uma vez assaltada pelos quantos medos que cabem em ti.

Respiras aliviada quando sabes que tudo está bem. Mas o medo, afinal e apesar de tudo, o medo.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

sombras



Seguimos rua acima de mãos dadas, tu entretida nos teus pequenos pulinhos de quem festeja mais um regresso a casa pela mão do papá, eu perdido nos meus pensamentos que de produtivos pouco têm. Ainda és pequenina, ainda precisas que te puxe pela mão para te proteger dos perigos mil que a rua esconde. Olho para ti e sinto-me eu pequeno ante a tua ousadia, a tua curiosidade, a tua coragem de tudo enfrentar e de todos questionar. Procuro muitas vezes um fio condutor, um elo, uma conexão que me traga do momento em que o pequeno era eu, até esta bizarra situação em que te tenho, um ser de palmo e meio, a meu cuidado. Eu, que nunca soube cuidar de nada, eu que mal tinha mão em mim, eu que agora te cuido e zelo pela tua vida. E sinto-me profundamente triste com o egoísmo das minhas projeções de um presente futuro que nunca foi nem nunca mais será. Não sou mais só eu, nunca mais serei só eu. E apesar de poucas as vezes, foram as suficientes para me embaraçar. As vezes em que pensei onde estaria eu agora, se não aqui estivesse de mãos dadas contigo, a puxar-te rua acima. Onde estaria eu agora, se não te levasse de volta ao colo da tua mãe, se não tivesse horário para vos amar, todo um calendário de afetos por cumprir. A responsabilidade é uma palavra de muitas letras que muito me custa a pronunciar, tão complicada que não ta saberia explicar se quisesse, senão decompô-la num bê-á-bá que te fizesse sombra de sentido. Sinto-me mesmo muito pequeno, e sinto-me mesmo muito envergonhado. De não encontrar nos teus pequenos olhos castanhos um explicação plausível para a minha existência obtusa, para a minha existencial confusão. Diziam-me anos antes com umas palmadas reconfortantes nas costas, que o amor de pai era o amor maior a que poderia alguma vez almejar. E sim, pequena, amo-te com toda a força que é possível a um ser depositar de amor em outrem. Mas, mas, sempre um “mas” teimoso. Mas… E se não estivesses aqui? E se a tua mãe não perscrutasse já da varanda a nossa chegada a casa, desejosa de nos abraçar no seu maternal abraço? Raios, odeio-me tanto por te questionar a ti e à tua existência. Mas o que faço eu, pequena, o que faço eu para expurgar de uma vez estas malditas interrogações, e deixar-me só ser amado em mais uma das tuas brincadeiras, sem pensar mais uma vez, o que seria feito de mim, se tu não estivesses aqui…?

terça-feira, 22 de setembro de 2015

despedida curta



Observava-te à distância segura dos olhares que não se comprometem. A tua pele dourava-se-me em cada esquina que calhasse cruzar-te, e despeitada me tolhia num suspiro de quem deseja sem poder.
Curvada me vergo à altivez inebriante do teu sorriso fugidio, que nele carrega mundos e sonhos que eu já não sei sonhar. São cruas as mãos que deslizo sobre a tua pele, é inóspita a língua com que absorvo os teus sais, os teus cheiros. Sinto o oscilar do teu corpo num perpétuo chamamento, enquanto desvias todas as atenções da música para a intrincada composição do teu corpo em se balançando. 

Destilas tal perfeição, que o mais habilidoso sommelier não teria a arte suficiente para te decantar. 

sexta-feira, 10 de julho de 2015

Do amor-próprio



Alguém que tive o privilégio de conhecer esta semana fez-me uma pergunta bastante pertinente: qual vai ser a relação mais duradoura da tua vida? O meu irmão!, respondi eu sem hesitar. É o meu melhor amigo, a pessoa com quem mais partilho código genético, apesar das curiosas diferenças que nos distinguem e que nos fazem ser ainda mais unidos.

Resposta errada, claro está.

A relação mais duradoura da minha vida é a que tenho comigo própria, e como todas as relações, nem sempre tem sido fácil. Dias houve em que pensei para mim própria o quão farta estava de ser eu, de coabitar comigo própria, tal era a complexidade de desafios que a mim mesma me colocava. Se para amarmos outras pessoas é precisa disponibilidade, amar-nos a nós próprios requer uma disponibilidade infinitamente maior. Será talvez um dos mais permanentes desafios com que teremos que lidar ao longo das nossas preciosas vidas.

Olhando para trás, e para as relações que fui tendo, fossem elas de amor ou de amizade, percebo claramente que algumas delas não foram bem-sucedidas pela minha indisponibilidade em me amar a mim mesma, antes sequer de pensar em amar o outro. Esta mesma pessoa que me fez essa pergunta, de uma perspicácia e sagacidade acima de média, usava uma analogia bastante interessante, e que vou guardar como ferramenta indelével neste exercício tão difícil de praticar que é o amor-próprio: não existe “a outra metade da laranja”. Existem sim “laranjas” que caminham juntas, que fazem um percurso, que crescem, se acrescentam, e por essa via evoluem. Aceitarmos esta premissa é meio caminho andado para que à medida que as pessoas que vão cruzando o nosso caminho, e se por algum motivo se afastarem, isso não constitua para nós uma tragédia pessoal, mas sim uma parte inevitável do longo percurso que é a vida. Talvez por ter acreditado por tanto tempo na outra metade da laranja, fui eu própria uma laranja incompleta.

Tenho tido a sorte de encontrar pessoas extremamente ricas que comigo têm partilhado ensinamentos preciosos. À medida que fui crescendo e que fui travando as minhas batalhas pessoais, apercebi-me que apesar de ser importante focarmo-nos no aqui e agora, na ideia do “um dia de cada vez”, é também importante fazer aqui e ali uma análise macro da nossa vida, olhar para trás e para a frente, perceber o que falhou e o que se quer evitar repetir de errado. Há feridas que por vezes damos como curadas, quando na realidade não estão senão arquivadas algures dentro de nós, prontas a doer mas nos sentirmos mais frágeis ou desprotegidos. Algumas delas são tão dolorosas, que o tempo inteiro de uma vida não é suficiente para as sarar. É importante reconciliarmo-nos com isso, porque nem sempre vamos conseguir resolver tudo, e não será à base de pensos rápidos que vamos chegar a algum lado.

Amarmo-nos, a nós próprios em primeiro lugar, prioridade primeira da nossa existência. Só assim seremos capazes de alguma vez amar verdadeiramente aqueles que vão fazendo parte das nossas vidas.a

segunda-feira, 29 de junho de 2015


Há metafísica bastante em não pensar em nada. 


A frase persistia em andar-lhe nos pensamentos ia para dias, não sabia porquê. Talvez porque desejasse simplesmente não pensar em nada. Fosse porque dava trabalho, fosse porque às vezes doía, sempre uma remota memória das coisas más que marcam. No exercício inglório de tentar vetar a cadência aos pensamentos, distraía-se movendo os dedos pela pele despida, entre o espaço que ia do osso firme da sua anca à derme suave que anunciava um princípio de seio. Sentia-se desejada e desejável, ciente do poder de abstracção que os seus dedos imprimiam em contornando as formas irregulares do seu corpo. Assim despidos sobre a cama, os corpos apresentam complexidade menor que a metafísica do em nada pensar. Despojados de amores e de ambições, tolhidos de esperanças ou de futuros, caminhando juntos para coisa nenhuma. A beleza que há em nada querer, em nada crer. Nada se querendo, tudo é muito, e em nada crendo, o peso dos dogmas é tanto como o de uma pluma. De tábuas rasas de compõem os dias.



Procrastinando o banho que a espera, prolonga-lhe o cheiro da pele que ele teima em lhe roubar. Lembrou-se que o dia mais longo do ano era aquele mesmo domingo, o dia em que exactamente às 17h38 as tardes mornas da primavera cediam lugar às tardes proibitivas de verão. Pensou no solstício e em quanta poesia ingrata cabia numa cama vazia no dia mais longo do ano. A vida cheia de paralelismos, e ela sempre tentando encontrar ligações entre os pontos, como quem une constelações em observando céus estrelados nos Verões da vida. Recordava a noite em que tinham soltado uma luz esvoaçante em direcção ao breu da noite, e em quanto de intenções nela tinha depositado, as esperanças que havia semeado naquele lugar. Tudo fumo, tudo pó. Sobravam apenas os corpos sem roupa, sobrava apenas a cama sem lençóis.

domingo, 14 de junho de 2015

histórias de amor em dias de chuva



Tanto ele como ela têm já mais de oitenta anos. Oitenta redondos anos. Conheço-os há uns três anos, vejo-os aqui e ali no espaço dos meses, mas só desta vez me sobraram uns minutos no meio da correria para escutá-los e observar a ternura que ainda se dedicam todos os dias. 

Enquanto me contavam a história que os une há mais de cinquenta anos, ela olhava para ele enternecida, ele passava-lhe a mão pelas costas no maior carinho que alguma vez tive o privilégio de presenciar. Ele tinha ficado dez anos em Moçambique a fazer investigação forense, ela casara-se aos vinte e um em Portugal e trabalhava numa fábrica de nylons. Mas aos trinta, uma fatalidade deixava-a viúva. E eu senti que tinha que correr para Portugal, ela estava à minha espera, disse-me ele de sorriso rasgado, como se nessa intuição conseguisse prever uma vida inteira ao lado dela. E não se enganou. Quando chegou, conheceu-a numa paragem de autocarro, e como quem compra um bilhete só de ida, apaixonou-se à primeira vista. E não se largaram mais, por mais de cinquenta anos, até aos dias de hoje. Faziam anos de casados nesse dia, 12 de Junho - fintámos o Santo António, sorriram - e tinham ido almoçar juntos ao mesmo restaurante de sempre. Embevecida, senti os olhos humedecerem-se-me na emoção de ouvir uma história assim. 

Despedi-me de ambos com os dois beijos do costume, e vi-os seguirem de mãos dadas como de costume, iam passar o resto da tarde juntos, como de costume. E nesse momento percebi que nunca tinha conhecido ninguém tão apaixonado, nem que assim tivesse permanecido durante tanto, mas tanto tempo. 

Porra, o amor.

quarta-feira, 3 de junho de 2015




Não quero viver numa casa em tons pastel, com toques subtis a cada esquina nem recantos de onde não quero sair nunca. Não quero viver numa casa amarela, cheia de sol para me alimentar a alma de coisas boas e esperanças concretizadas. Não quero viver numa casa azul, de mar e céu onde me posso perder sem nunca ter de fugir de mim nem dos outros. Não quero viver numa casa branca, onde reine a quietude e a certeza da paz conquistada. Não quero viver numa casa vermelha, cheia de amor e de promessas cumpridas. Não quero viver numa casa laranja, cheia de sorrisos e de crianças eufóricas em constante correria.

Não.

Quero tão só e apenas viver numa casa sem tecto nem chão nem paredes nem cores. Uma casa erguida de beijos e pintada de abraços teus, de ternuras infinitas e afectos desmedidos e paixão a perder de vista. Uma casa onde não falte nem sol nem mar nem céu nem paz para nos embalar nas noites melosas da Primavera, nas tardes preguiçosas do Outono. E se do alpendre dessa casa a minha vista puder alcançar os campos e o mar e o quanto de amor que neles cabe, saberei então que olhando para ti me vejo a mim, e que em olhares para mim te achas a ti. E que quem dessas riquezas se alimenta e vive, de bem algum precisa para ser completo e uno.

Assim sonhei um dia, todos os dias.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

M A N O S



As noites não eram muito diferentes umas das outras. Sempre que o céu desabava para nos desarmar, o cheiro do petróleo invadia as paredes grossas e antigas da cozinha. Um lugar tosco nos abrigava a todos, esquiço de família que nunca o chegou a ser de verdade. O frio uma constante, o corpo de mãos em mãos passando da toalha de banho para o pijama, do pijama para uma manta quente que há-de deitá-lo numa cama algures lá em cima. As noites mais assustadoras, de insistir em ler um livro à luz tímida da vela, de abraçar o corpo e entregá-lo às paredes meias do frio. O inverno atravessava-nos o corpo como nenhuma outra estação, fazia de nós intrépidos e determinados sobreviventes aos caprichos das intempéries. Uma papa esbranquiçada e depois amarelada do açúcar mascavado alimentava-vos para essa noite fria que agora avançava sobre nós. Fiéis amigos, nós os dois. Sem ti eu nunca teria sido eu, senão uma sombra deambulante pelas terras que eles  nos deixaram. Espectro assombrado, sem saber o que seria de mim assim sem ti, sangue do meu sangue, irmão do meu coração.

És o meu amigo da vida, para a vida.
A vida sem ti tinha sido tão triste.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

photo @ João Tamura

Hoje viajei ao passado, passei-te os dedos pelas memórias e pelos tempos que deixámos habitados em parte incerta. Viajámos pouco, tu e eu. Fixos ao presente e às realidades construídas e perspectivadas, pouco nos abstraímos, de nós mesmos e um do outro, de tão submergidos que ficámos daquele amor que me revolvia os órgãos e me transtornava cada célula. A tua pele já não adormece nos mesmos quartos que a minha, o cheiro que exalavas deixou de sobreviver às tuas partidas, e o teu peito já não obedece às leis da gravidade que inevitavelmente o atraíam para o peito que era o meu. De fundo, há uma melodia constante que me enleva e me leva, me apura os sentidos e me confunde os destinos. A saudade é agora quente e silenciosa, um hálito quente que bafejo na janela húmida enquanto a ponta dos meus dedos traça na condensação a inicial do teu amor, perdão, a inicial do teu nome. Perniciosa mas luminosa é a dualidade que me faz amar-te umbocadinhomenos/umbocadinhomais todos os dias. Sabes que as palavras tendem a esgotar-se. São já mais as que guardo para dentro que as que deixo por aí à mão de semear e de darem fruto. Tudo não passa agora de um vulto que assombra raras distracções, momentos de fraqueza em que o corpo cede e acede ao que já não é. 

Tudo uma questão de tempo(s) apenas. 
Passado. 
Presente. 
Futuro. 

sábado, 3 de janeiro de 2015



O cheiro do calor impregna o ar, o destilar dos poros relembra-nos o quão de carne e osso somos. Saímos agora da banheira branca onde nos despimos do sol e do sal, brancos e amarelos beijam-nos a vista enquanto insinuo a pele ao teu toque fugidio. Desprezas subtil a minha toalha molhada no chão molhado, peço-te ajuda com a loção e o cheiro da tua pela húmida desperta-me para a luminosidade que irradia este verão quente nesta casa de campo onde somos o mundo que nos rodeia e o quanto dele que nos cabe dentro. Repito o teu nome até onde mo permite a insensatez, intercalo-o com o meu enquanto os imprimo aos dois no branco destas paredes, nestes soalhos e pedras que pisamos descalços e perdidos de amores. A memória faz desta casa a mais feliz de todas as casas, e a mais triste quando tenho que a deixar. Triangulas a existência até onde o nosso entendimento a alcança, e tudo o resto é opacidade. 

A simbiose perfeita entre nada e coisa nenhuma.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

photo @ Pedro Miguel Rodrigues 2014
PMRPHOTOGRAPHY

Há sonhos que já não se podem ter. Exemplo? Noutro dia, por uma fracção se segundos, pensei "quando tiver uma mãe, quero que ela se pareça com a Merryl Streep". Mas não, este não é o tipo de desejos que se pode mais ter, porque mãe há só uma, e a minha já não há mais. Há noites assim, que não chegam a passar de uma espera num banco vazio, cinzento esquecido numa estação de comboios. Nesta viagem não há bilhetes, nem de ida, nem de volta. Há tempos que se cruzam, vidas que se enlaçam, anos que passam e damos cada vez menos por eles. É boa a passagem do tempo, aprende-se a destilar melhor o que é bom do que não nos faz bem. A beber mais das alegrias, a sentir menos as saudades. Aprende-se que há pessoas que fazem valer os nossos dias. E que há concertos, fragmentos de músicas, que validam uma vida inteira, todos os segundos que congeminaram para que vivêssemos aquele momento. E assim ficamos, entrelaçadas uns nos outros, à espera que passe o próximo comboio, que chegue a próxima viagem. A vida pulsa-nos dentro.

domingo, 21 de dezembro de 2014

Fique de vez em quando só, senão será submergido. Até o amor excessivo pode submergir uma pessoa.
Clarice Lispector

A noite caiu já, o breu abraça implacável a cidade, indiferente ao amarelo incómodo que a iluminação pública atira para as ruas. Ainda assim embrenhada de negro, a cidade seduz e desperta-me todos os sentidos, apetece-me fotografar-lhe cada aresta, os becos sem saída, as artérias que descem das colinas para o Tejo. 
Em parando para pensar nisso, não sei de imediato o que mais me apetece: se fotografar a cidade, se fotografar-te a ti. Suspendo vagaroso o tempo e analiso-te enquanto finjo fotografar-te. No frenesim que nos compassa os movimentos, não fixei as linhas que te delimitam, então guardo a tua imagem para não esquecer nunca todos os retratos que o teu rosto encerra. Pudesse apenas fotografar-te agora, de verdade, neste momento, tão apetecível que ficas. Cada expressão que me devolves sabe-me a um frame que se quer ser captado, tamanha que é a provocação espelhada nas danças que ensaias. O melhor beijo que te dei, é aquele que ainda não te dei, aquele que insinuo suspendendo a minha boca sobre a tua, sem nunca chegar realmente a deixar os meus lábios aquietarem os teus. O teu hálito quente faz-me estremecer, ferves e eu fervi-lho na evidência da temperatura denunciada pelo teu corpo. Deslizando os dedos por ti fora, perco-me nos labirintos que te desenham e te tornam único. As cores vivas captam-me o olhar, mas não por muito tempo. Seguro de ti, queres em convencer que sabes de tudo, que de emoções estás cansado, que os meus trilhos são-te familiares, apesar da inóspita vénia que te curvo em te venerando. Tu não sabes é nada, quando podias saber tanto. E ao mesmo tempo sabes tanto, e deixas-me confusa quanto ao tanto que realmente sei. Ou será que não sei?...

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

vizinha Lena

quarto


O meu quarto da cidade costuma dar-se ares de província, de tão silencioso que sempre fica. Só lhe faltam mesmo os pardais da província. No despido quarto de aldeia onde cresci, janela virada para a estrada, entravam sons de carros, de motas, de carroças e de tractores, do sino e do relógio da igreja - afinal, era o quarenta e um da Rua Principal, a rua que ligava o início do lugar ao largo da igreja, onde o mundo se resumia para começar e logo acabar - afinal, nada mas mesmo nada ali acontecia. Sons e os sons dos pardais. A vizinha Lena morava mesmo à minha frente e tinha árvores onde cantavam os pardais que me adormeciam quando me deitava de manhã, que me acordavam quando me levantasse cedo. 

A vizinha Lena, Quando fui viver para Roma em 2006 fiz questão de me despedir cerimoniosamente dela, porque achei que de velhinha e doente que estava, morreria enquanto eu estivesse em Itália. Fui, voltei, e ela aguentou. Aguentou Itália, aguentou Espanha, aguentou Brasil, aguentou todas as minhas outras idas e vindas. Pelo meio das viagens até a minha mãe partiu, mas a querida da vizinha Lena lá ficou, de pé, até hoje. Penso nela tantas vezes. E não a visito mais, porque se desfaz em lágrimas cada vez que me vê. Chora, chora muito, chora-me de amor sincero e das saudades que sente da minha mãe, da minha avó, do meu avô, e daquela nossa fase na infância onde ainda não sabíamos quão cruel a vida podia ser. Saudade daquela idade onde o que o meu mano mais queria era passar os dias pelos campos, alfaias agrícolas que o rodeassem, terras para amanhar, animais por alimentar. Francisco, onde andas? E íamos dar com ele a almoçar ou a jantar na casa de um vizinho qualquer a quem passara o dia a ajudar, de volta de alguma fauna ou de alguma flora. Uma vez desapareceu uma tarde inteira. A minha mãe desesperada, eu a chorar aflita no quarto a aceitar que nunca mais ia vê-lo, já só faltava seguir para a polícia. Fomos dar com ele, coisa mais amorosa desta vida, a dormir a sua sesta  dos quatro aninhos dentro de uma antiga coelheira que já não usávamos. 

Entre o tudo ficar estranho e o não termos consciência nenhuma do que vivíamos, passou não muito tempo. Os pássaros nunca deixaram de cantar, mesmo se na casa os barulhos eram dolorosamente ensurdecedores. A vizinha Lena nunca deixou de nos abraçar com tamanha ternura, a ternura que já não temos do avô nem da avó, e que todos os dias tanta falta nos faz. E os ruídos da Rua Principal nunca deixaram de invadir o quarenta e um, mesmo se os que de lá de dentro saíam pouco fizessem pela nossa salvação.

A província, sempre a província, vincada e amarrada agora e para sempre, ámen.  

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

quem é quem


 Não, não quero mais gostar de ninguém porque dói. Não suporto mais nenhuma morte de ninguém que me é caro. Meu mundo é feito de pessoas que são as minhas – e eu não posso perdê-las sem me perder.
Clarice Lispector

Ainda não te digeri bem.

Caíste-me mal como uma cerveja morta em final de noite, que já não aquece nem arrefece, só estorva. Usurpas com doentia mestria a libido alheia, completamente indiferente aos danos colaterais do teu hedonismo. Para quê então essa falsa mansidão com as palavras, para quê fazer das conversas um chá das cinco, quando sabes que o teu propósito é sempre e só o de te servires dos outros a teu bel-prazer ?

Nunca tiveste muito jeito para te desfazeres de coisas velhas. As escovas de dentes já descartadas e esquecidas meses a fio pelos WCs, o pomposo séquito das lâminas usadas e ferrugentas amontoadas umas ao pé das outras, as especiarias caducadas há meses, anos atrás jogadas pela cozinha, o frigorífico, fiel depositário de alimentos decompostos ou em vias de.

Às pessoas fazes o mesmo. Deixa-las habitarem-te indefinidamente, perpetrando memórias que já ninguém quer, procrastinando como quem dança à volta do inevitável. Se pudesse, processava-te em saquinhos de chá enquanto durasses, para te ferver e te beber em vagarosos tragos, até que te esgotasses dentro de mim em sabores de frutos e de flores.

A última vez que fiz o percurso do rio, senti o estranho descompasso do amor desconjuntado que às vezes levo a passear. O coração em arritmias leves, quase inaudíveis, lembrando que a presença do corpo não é senão um luxo que a poucos assiste, quando as almas são inseparáveis, desde sempre e para sempre.


Insistes em bater dentro de mim. Tão mais fácil se fosses só um saquinho de chá.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

manhã



Deixei-me ficar a observar-te enquanto no teu rosto se desenhavam subtis esgares de prazer em absorvendo a luz que invadia o quarto, e acordavas para mais um dia em que te vou amar. Assim desarrumada na tua imperfeição, ainda mais perfeita me és. Bocejas ainda as memórias dos sonhos que sonhaste, e dentro de minutos, os pós e os líquidos da tua maquilhagem vão tomar conta do teu rosto, para te aprontar para os outros. Mas aqui, desalinhada e descomposta, só eu me posso deleitar de te ver assim cândida, os teus olhos devolvendo-me os brilhos essenciais da manhã, as primeiras esperanças do dia que aclara, as ambições de toda uma vida. Seguir os teus movimentos relembra-me o sentido mais primordial da existência, a urgência primeira de me satisfazer em te ver a ti satisfeita, radiante, feliz, amada, completa. E que nada mais importa senão tu e eu, que quase expludo de felicidade quando te vejo sorrir, que trocava a minha vida inteira por uma noite partilhada contigo. Em eterna doçura beijas-me a testa, os teus cabelos caem sobre o meu peito, apartas-te de mim e foges para a cozinha. Pouco depois chegam-me os vapores do café que preparaste. Cheiras-me ao açúcar que deitas na chávena e a campos onde a chuva acabou de cair, cheiras-me à visão límpida do infinito que fica quando as primeiras águas do outono assentam as poeiras da terra, deixando limpo o teu pedestal. Estranha divindade que tu me saíste. 


Porra, estou atrasado.  Outra vez.

terça-feira, 4 de novembro de 2014



Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida.
Clarice Lispector


À minha volta, contavam-se quase duas mãos cheias de corações partidos. Todas mulheres, todas sabiam de cor e salteado o outro amargo lado do amor. O lado obscuro da perda, do desaparecimento, esse lugar estranho onde a saudade manda mais que tudo o resto. Amor esse que é indubitavelmente a força maior da condição humana, construtor e demolidor, sereno e implacável. Em ritmados rituais, purgavam as dores da alma balançando mantras de esperança e de amor que se quer cumprir. Audaciosas bailarinas, agitavam-se na urgência de se cumprirem no seu propósito, recetáculos intemporais de compaixão e de vida. A dança enleva os corpos, tudo se transcende na compassada síncope dos braços que balançam, das pernas desenhando orações. No turbilhão das estrelas que caem lá fora, na esperança dos desejos que encetavam os corpos. Almejamos mais, muito mais. O mundo é todo nosso e de mais ninguém. 

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Horário de Inverno



…e que nada nem ninguém é mais importante do que nós próprios. E não devemos negar-nos nenhum prazer, nenhuma experiência, nenhuma satisfação, desculpando-nos com a moral, a religião ou os costumes. 
Marquês de Sade


A hora mudou. Este horário de inverno não mais me permite tactear-te corpo fora e descobrir os teus relevos por entre as roupas da cama escondidos ainda pela escuridão da manhã, pois que logo os primeiros raios das novas horas te põem a descoberto, serena e imperial, à mercê do meu ávido olhar que se quer consumir de tanto de observar. Nunca aprendi a escapar à tua intrincada sedução – nem tão pouco sei se alguma vez o vou querer. A mulher alguma devia ser permitida tamanha lascívia, homem nenhum devia ser sujeito a semelhante tentação. Mas cada molécula de ar que me permites partilhar só a ti pertence, e não é senão um privilégio inspirar esse mesmo ar que a ti te mantém viva, e vivo continuar também eu para te respirar por mais uma noite.

Anoitece mais cedo, mas nem por isso voltas para mim quando o sol se põe. Fazes-me sofrer, sabes tão bem como me fazer mendigar a tua atenção e deixares-me suspenso na adivinhação dos teus próximos passos. Venero-te, sabe-lo como ninguém. E melhor que ninguém, sabes também que me envolves no fumo dos cigarros que para meu deleite fumas noite após noite uns atrás dos outros, pendurada na varanda sem roupas que te vinquem as magnânimas curvas, nem costuras que separem a minha pele da tua. A envolvência dos fumos que preenchem as quatro paredes da alcova, a tua tenacidade em reter o filtro sem nunca perderes a candura como se virgem intocada fosses, como se do mundo nada soubesses, como se de mim não precisasses.

Fuma, fuma só mais um, antes de deixares de vez os teus vícios e manias de gente grande e te abandonares a estes lençóis brancos onde não és mais senão comum mortal como eu, onde o teu ser não mais supera o meu, onde te encontro e te sou igual.

Fuma, fuma só mais um e entrega-te aqui, a mim, agora.


Fuma, fuma só mais um.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Sou qualquer coisa que fui. Não me encontro onde me sinto e se me procuro, não sei quem é que me procura. Um tédio a tudo amolece-me. Sinto-me expulso da minha alma.
Livro do Desassossego por Bernardo Soares

Só o palrear dos grilos acompanha o lusco fusco matinal em que me sento. Acendo um cigarro só pelo prazer de ver o fumo competir com a neblina que se me assenta na pele. Arrepiei-me e tu nem deste conta. Presságio ou não do teu apartamento. Quem sabe? A manhã ameaça já despontar, o relógio parou entre as sete e as oito, e tu desenhas ainda sem parar. Desenha-me outra vez, penso para dentro, enquanto queimo mais um bafo no cigarro. Despi-me das amarras e fui tudo o que nunca alguma vez pensara ser possível. A pessoa mais feliz do mundo, mesmo depois de tudo. Mesmo depois de tudo, a pessoa mais feliz do mundo. Doce privilégio esse, amargo o gosto de quando se evapora a gota última desse elixir que chamam de felicidade. Humedeço os lábios, em te pedindo na penumbra da manhã um último beijo que nos enleve para sempre no chamamento que o destino nos faz. Que fragmento bizarro, esta madrugada abafada e disfarçada de fria. Nunca te sentaste comigo nestes degraus a apreciar a quietude do campo, a inércia da vegetação, a diversidade dos teus verdes. O mundo jaz aqui aos nossos pés, este chão, estas fundações, este pedaço de terra onde nos pertencemos noites sem fim, onde o mundo começa e acaba em nós. Pouso os pés descalços no chão frio e sinto a tua mão descer-me sobre o ombro, a chamar-me para a tua cama. 
Vou já, meu amor. Espera por mim, que vou já, meu amor.