quarta-feira, 14 de agosto de 2013

photo @ Clickt 2013 | www.clickt.com.pt

A música já tocava cá dentro ainda antes de me reconhecer como gente. A minha mãe contava-me a história de como só descobriu estar grávida num concerto, em que aparentemente terei começado a pontapeá-la, como que reclamando um espaço cá fora onde também eu pudesse sentir a actuação que estava a perder escondida dentro da sua barriga. O violino acompanhava-me para todo o lado praticamente desde os primeiros passos titubeantes, e quando comecei a deslindar-lhe todas as manhas, todos os segredos, nunca mais o larguei. Em cada acorde, descobria mais sobre mim e sobre o que tenho dentro. E quando se envereda numa descoberta desta dimensão, dificilmente se consegue voltar atrás. A profundidade de nós próprios tem mais que se lhe diga do que julgo que a maioria de nós terá capacidade de compreender. Quando se vive atormentado com perguntas para as quais nem sempre há resposta, o mundo assume uma complexidade que ora seduz, ora repulsa, consoante as perguntas fiquem ou não por responder. Nessas alturas, penso que gostava de me questionar menos, de ser menos exigente, menos curiosa, menos sedenta de vida. Aqui, vem-me sempre à memória o de poeta e louco, todos temos um pouco. A poder escolher, tomara eu ser menos poeta e mais louca, alheia aos pontos de interrogação que me pairam sobre a cabeça. Não havendo remédio que trate destas maleitas, agarrada ao violino continuo a demanda, na esperança de um dia ter mais respostas, e menos perguntas. 

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Os nómadas da praia



Dias que viram noites que viram dias que viram noites.

A linha entre uns e outros é ténue, quando não calha a ser nula. E se não sei onde uns começam, menos ainda sei onde os outros acabam. A horda de seguidores, sôfregos e extravagantes, dá corpo a um séquito de cores, sal, areia e sol, qual corte andrajosa, unida no propósito comum de não deixar por mãos alheias um segundo só deste estio que se lhes oferece em tom provocatório. Despidos os clichés, veste-se o corpo de música, de fumo, de vinho ou desse orvalho nocturno de que também se faz um verão. Aquecido o espírito, pés descalços ao caminho e acende-se o rastilho à entrega. Porque a música fala mais alto, remisturando molécula a molécula a matéria para a enlevar em acordes profanos que sem pudor se entranham na pele, no sangue, no suor, nos odores. 

Deitados no chão, pregamos todos os olhos no céu à espera da chuva de estrelas que se promete para hoje. Como se de chuvas e de estrelas todos nós precisássemos, almejo colectivo de novidade, de cósmico, de espaço e de fantasias.


Verga-se o corpo ao castigo, para logo a seguir o ver empurrado para parte incerta, para uma dimensão onde os dias viram noites que viram dias que logo de seguida viram noites. Nos pés, sempre uma areia que teima em não largar, no corpo um sal que sazonalmente se agarra e que só abala quando estiverem para cair as primeiras folhas do outono. 

Porque até lá, somos os nómadas da praia. De areia e sal nos fazemos, sem ponto de partida nem ponto de chegada, entregues que estamos ao capricho dos elementos.

domingo, 11 de agosto de 2013

Enquanto descia entorpecida(s) as escadas do teu prédio obscuro, não pude evitar uma viagem ao imaginário da minha infância, onde sonhava com prédios de escadas tímidas de madeira, corrimões enferrujados pelo bafejo do tempo, fachadas decrépitas, sapateiros enrugados de portas abertas no rés-do-chão. Saindo porta fora, abre-se-nos um dos bairros mais apelativos de Lisboa, esse capricho chamado Príncipe Real. Enquanto procurava não derreter no caminho até ao carro com os quase quarenta graus que se faziam sentir, uma panóplia de galerias de arte, lojas de rua centenárias, ateliers repletos de trajes apetecíveis, e velhos e novos rua acima, rua abaixo, uns deliciados, outros indiferentes.

Lisboa tem este poder de se me entranhar debaixo da pele, e dias há em que parece que a vejo pela primeira vez, de amor renovado e incondicional entrega. No caminho para casa, pergunto-me se alguma vez terei a coragem necessária de deixar esta cidade que me remexe tanto por dentro. Evito pensar nisso para já visto não ser necessário, e uma colina após a outra, chego a casa de sorriso nos lábios, mais apaixonada que nunca.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

photo @ Ricardo Brito 2008


Na noite em que te alongas, não há lugar ao espectro da minha ausência.

Na noite em que me alongo, da tua ausência se cosem horas, minutos, segundos.

A sombra a que te devias ter remetido sem delongas porfia em estender-se a realidades onde já não tem lugar, indiferente às investidas que promovo em sentido contrário. Suspiro. Mais um dia desta realidade temporária chega ao fim. Porque tudo passa, e nada é para sempre. 

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Love is everywhere, they say

photo @ Cláudia Rocha 2013
que o amor está em todas as coisas, basta olhar. Dele bebo em cheiros, dele me encho em falésias, em todo o lado o encontro menos à flor da tua pele. Numa casa caiada de branco, numa velha porta de madeira em riste de azul, num telhado descascado onde me deito e me entrego ao céu. Estendo os braços num abraço etéreo, demorado e monocórdico. Aqui não chegam os sons das baterias nem dos órgãos, nem os pés das bailarinas a baterem no chão, nem os sinos e os cães e a banda e os foguetes pela manhã, quando o corpo ainda mal se abandonou da música, para agora se entregar à cama. O corpo embebido de lama, a alma despojada de contornos, só uns braços esticados à procura de amor. 

esse amor que está em todas as coisas, basta olhar.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

12 Janeiro 2008 - 15 Abril 2013

photo @ Ricardo Brito 2013


Teoricamente, só há uma possibilidade perfeita de felicidade: acreditar no indestrutível em si sem a ele aspirar. 
O indestrutível é um; cada indivíduo o é ao mesmo tempo que é comum a todos, daí esse laço indissolúvel entre os homens, que é sem exemplo. 

Franz Kafka, Meditações 



Uma das ínfimas vantagens que se pode retirar de levar muita pancada ao longo da vida, é que se chega a um ponto em que já são poucas as coisas que nos fazem cair do cavalo. Seja numa tentativa de preservar a sanidade mental, ou porque de uma maneira ou de outra se aprende a viver melhor a dor, a desconstrução da tragédia e a sua relativização passam a ser uma maneira de estar da qual depende a sobrevivência no geral. No meio de tantas negligência, de tanto esquecimento, de tantas expectativas frustradas, de tanto amor não recebido, é uma missão quase impossível não resvalar para o abismo, baixar a cabeça e aceitar a derrota, colocarmo-nos a nós próprios no centro da culpa e vandalizar a réstia de auto-estima que daí possa sobrar. 

Mas comigo não foi assim. Resiliente, fui à luta de todas as vezes, combati todas as batalhas e saí de quase todas de cabeça erguida. Com sequelas, é certo. Mas inteira, determinada, combativa. Foi assim quando tive idade para perceber que tinha um pai que não me queria, foi assim quando a minha casa deixou de ser um porto seguro, foi assim das vezes que a mãe nos deixou, foi assim quando perdi os avós, e foi assim quando perdi o amor de uma vida.

Sacudida a poeira, revoltas as entranhas, e sinto-me mais forte e invencível do que nunca. Olho ao espelho e fico orgulhosa do que tenho à frente. No abraço em que me estendo, compreendo que o que está por vir nunca poderá ser pior do que o que já foi. Não, no que depender de mim. E levantando a cabeça uma vez mais, sigo destemida à procura do que me está reservado. Porque apesar de todo o potencial de auto-destruição que me foi dado em herança, consigo mais do que nunca gostar de mim e da pessoa em que me tornei. 

E não há nada que pague isso.