quinta-feira, 14 de abril de 2016

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Entretanto, terão passado dez anos. Dez longos anos. Alguma vez pensaste que dez anos passariam assim num ápice? Porra. Dez. 

Lembro-me bem das primeiras horas e dos primeiros dias em que a nossa vida nunca mais foi a mesma. Respirar doía, abrir os olhos doía, sair da cama doía. Esmagada de dor e de pesar, o que mais desejava era que o tempo voasse, que passassem rápido os anos e levassem com eles a saudade dos abraços que nunca mais abraçámos, dos beijos que não mais beijámos, as chegadas a casa que não mais aconteceram, os sorrisos e até as lágrimas. Tudo, até o mais negligente do amor que dela recebemos. E ei-lo que passou, lento nas horas dolorosas, sempre veloz nos tempos mais felizes. Mas passou finalmente, e com ele levou o choro fácil, a raiva sentida, a sensação latente de abandono de cada vez que alguma coisa corre menos bem, que o chão onde caminhamos é mais tremido, ou sempre que apetece correr para um colo que nos acalme. 

Nos últimos anos, tenho-me esquecido de me lembrar da data. Nos primeiros, o peito fechava-se-me sobre si próprio, não conseguia levar ar aos pulmões, as costas desfeitas de dores somatizadas. Sofria antes, durante e depois. Sofria cada vez que precisava dela, de lhe ligar, e não mais podia fazê-lo. Os anos trouxeram por fim um esquecimento repleto de alívio, e isento de culpas. Não mais sofri o antes, o durante nem o depois do aniversário da morte dela. Passou a ser um dia que passa por mim como tantos outros, um dia sem peito apertado e sem falta de ar. Prefiro agora lembrá-la nos outros dias normais, dias em que não temos que assinalar o teu último respirar neste mundo onde nos deixaste. Lembro-me dela e embalo com carinho e saudade a sua memória. Não sofro mais a sua ausência, senão uma saudade que nunca vai deixar de existir, enquanto dentro de mim houver coração que sinta, e um cérebro que pense. 

E assim se passaram quase dez anos. 

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Quando o medo te é uma palavra estranha


Gostas de acreditar que és forte, que medos tens poucos, que o que já passaste faz de ti resistente ao tudo que há de vir. Mas dás por ti sozinha sentada num corredor onde esperas a tua vez para seres testada, que nem um rato num laboratório. Uma amostra disto, um exame daquilo. Ao teu lado, alguém fala sobre massas de 17 centímetros, sobre cirurgias e exames cujos nomes nem arriscas pronunciar. A miúda sentada ao teu lado não terá mais de 15 anos e discute temas difíceis com a mulher de meia idade que a acompanha. Não se lhe notam preocupações ou medos, como se uma estranha invencibilidade tomasse conta dela. Sentes os pêlos do teu braço eriçarem-se e sabes que não é do frio cortante que faz lá fora, tão pouco da música boa que ouves nos teus fones. O arrepio que sentes chama-se medo, uma sensação irracional por não saberes o que te vão dizer depois de te testarem. É inevitável pores em perspectiva o que fazes com o teu tempo, como ages com os outros, o quanto de generosidade ou frieza que pões nos teus atos naqueles dias normais em que a incerteza não paira sobre a tua cabeça. A luz imensa do corredor encandeia-te além do razoável, e tudo o que querias era que a luz se apagasse e uma mão segurasse a tua e te dissesse que está tudo bem. Tudo o que querias era que alguém te repetisse que és perfeita e te secasse a lágrima que ameaça saltar do teu olho a qualquer momento. Relativizas tudo e pensas uma e outra vez se tens amado o suficiente, se te tens deixado cuidar, se a pressa dos teus dias não te deixou mais fria e mais só, ao ponto da tua autonomia começar a fazer todo e o único sentido. Anseias sair para a rua e engolir um cigarro que camufle a tua ansiedade e o teu medo das coisas que ainda não sabes. Percebes então que estavas enganada o tempo todo sobre a tua total tolerância aos medos, pois não tens a teu lado a mão que tanto querias a segurar a tua, nem o peito que apoia a tua cabeça trémula. Sentes-te pequena, indefesa e desamparada. Até que ao fim de uma melindrosa espera chamam por fim o teu nome. Despes-te numa sala cheia de máquinas frias e és mais uma vez assaltada pelos quantos medos que cabem em ti.

Respiras aliviada quando sabes que tudo está bem. Mas o medo, afinal e apesar de tudo, o medo.