quarta-feira, 31 de julho de 2013

No Adamastor, já não moram as pedras da calçada. Agora, param por lá umas pedras que o breu da noite não me deixa identificar. E dão-lhe um ar mais de europeu que de lisboeta, como se queria. Sento-me numa delas, atiro o corpo para trás e presto vassalagem ao céu. Apesar de passar largamente das dez de noite, na pedra vive ainda um calor que ficou da tarde, e que me aquece as costas enquanto as encho de poeira. Sinto uma verdade invadir-me o corpo numa vergastada que juraria rasgar-me ao meio. Entre o meu corpo e as estrelas que o encimam, uma evidência impõe-se crua e esmagadora. ocupando todos os átomos que me permito pressentir. A evidência de uma vida que fica por cumprir, de um sentimento a ficar por consumar, para sempre perdido entre o aqui e o nada. Que esta coisa de arrancar um amor do coração tem que se lhe diga. Sangra-se, e não há penso rápido que sirva de tosco reparo. Despedaçam-se os tecidos para logo a seguir se projectarem nas paredes do peito, doídos, moídos, sofridos. Pegar no coração e jogá-lo penhasco abaixo agarrado ao corpo, na esperança de ver os dois desfeitos lá em baixo, destruídos das pedras e levados pelo mar. 

terça-feira, 30 de julho de 2013

Sines

Os primeiros raios de sol havia já para mais de uma hora que começavam a banhar as pedras soltas da calçada e a areia da praia. Os que ainda apresentavam réstias de força começavam a dispersar, quais almas penadas, enchendo as ruas de corpos moles e pardacentos, aparentemente sem destino definido. Os outros, acostavam-se aqui e ali, caídos onde calhava, totalmente alheios à vida que à volta lhes começava a despontar.

Eu própria arrastava o meu corpo rua acima, qual espectro, tomada de uma inextrincável sensação de flutuar acima do chão que os meus pés descalços e encardidos pisavam. Umas havaianas pendiam-me numa mão, uma cerveja já morta jazia esquecida na outra. Resgatando o pouco discernimento que me sobrava àquelas horas da manhã (uma sete…?), procurei dentro de mim um sentido para a turbulência de sentimentos que vinha a sentir desde há horas. De um palco longínquo, chegavam-me ainda os acordes da uma miúda qualquer que cantava chorosa. I’m still in love with you, boy, queixava-se ela. Porra, pensei, não havia outra música para me chegar?... Um esgar de dor assomou-se-me ao rosto em resposta à tensão que me chegava das costas, tal era a intensidade dos dias que ora atravessava.

À chegada a casa, novo reencontro. Um desvio forçado obriga-me a cruzar o espaço onde a odisseia começou, e inevitavelmente os meus olhos fogem-me para as colinas e para o rio e para a ponte e para os telhados onde por alguns minutos foste ainda meu, quando afinal já não o eras há muito tempo. Porra, sempre estes acasos, sempre. Quanto mais fujo, mais encontro. E não consigo deixar de lembrar aquele dito do folclore brasileiro, podes fugir mas não te podes esconder. Efectivamente não sou nada boa a esconder-me, por muito que fuja.

A minha intuição tem sido fiel e infalível conselheira. Não me tem deixado ficar mal, e mesmo quando não lhe passo qualquer crédito, qual chapada de luva branca, acaba sempre por me provar que apontava o caminho certo o tempo todo. Intuo pessoas, que se provavam ser as certas, intuo sentimentos, nos quais acerto também, e intuo agora uma necessidade de estar só, mas que tardo em validar. Deslindado esteja o tempo que está por acontecer, e sei que esta miragem difusa do que quero para mim há-de florescer no oásis que lhe pressinto. E sinto, pressinto e intuo uma vez mais que aí serei finalmente capaz de recostar a cabeça, pousar as havaianas e a cerveja já morta, e sentir os primeiros raios da manhã pousarem-se-me no rosto, como quem encerra um capítulo.


Por fim, ficará só o que está por vir, e tudo o resto não será senão um nevoeiro que escondeu a paisagem…

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Elegia

Fecho os olhos e viajo. Penso em ti e procuro-te nas memórias que começam a querer escapar. Como mil pássaros na floresta que se vão acostando à copa das árvores, assim estão os fragmentos estilhaçados que me deixaste de presente quando também tu levantaste voo e foste. Flutuam pelo espaço, para acabarem escondidos sob a folhagem de uma qualquer árvore desta floresta enorme a que insistimos em chamar de sentimentos. Procurei-te por tempo demais. Em paredes, praças, músicas, miradouros, fotografias, palavras, escritos, viagens interiores que nunca mais acabavam. E em todas elas, uma constante. Sempre em todas elas, o voltar sozinha para casa, para aquela casa onde mesmo não vivendo fisicamente, sempre deixavas o teu espírito, que sempre estava para me receber de braços abertos e acolher-me de volta à casa. Hoje a casa está praticamente vazia. Para lá caminha desde o dia em que vieram uns senhores pequeninos e começaram a desmontar as mobílias, a retirar os ornamentos, a despendurar as molduras, enfim... a desmastrear o navio. Trabalhamos para o Esquecimento, disseram-me eles no primeiro dia. Viemos para ficar até estar tudo desmontado, empacotado e pronto a seguir viagem. Anui, e tenho-os deixado trabalhar até hoje. E de dia para dia, lá ela vai ficando um bocadinho mais vazia. Está perto do fim, dizem-me os senhores pequeninos que trabalham para o Esquecimento. Ainda bem, pensei eu, já não suporto ouvir o som que eles fazem a desmontar e encaixotar tudo. Do mal o menos, os trabalhos estão quase concluídos e a porta quase a fechar. E agora, viver onde? Até ver, sou sem tecto, sou sem chão, sou do mundo e de mim mesma. De mim me faço e desfaço, e procuro resistir à tentação de te encaixar nos espaços que pelo meio ficam vazios. E eles assim lá ficam, ocos e pálidos no nada acostados, até que eu me volte a fazer e desfazer de novo e os preencha com novas paredes, praças, músicas, miradouros, fotografias, palavras, escritos, viagens interiores. 

Não me abandones mais vez nenhuma, nem me votes ao sentimento de cair nua e indefesa numa ilha deserta de onde não sei sair, de onde não sei se consigo sair com vida. Deixa que este seja o último suspiro, a última despedida, o último encontro, o último toque, a última palavra, o último sopro, a tua última pele na minha, o teu último rasto de perfume na minha almofada, o teu coração bater quente junto ao teu meu, a minha boca adormecer com o bafo quente e acolhedor da tua respiração bem na minha cara, o último pôr de pé na areia, um último cigarro, uma última partilha. De nós partimos e a nós voltamos, para nosso benefício e sem lágrimas que não sejam estritamente necessárias.
photo @ Ricardo Martins 2011
A última vez que estive com ela antes de ser hospitalizada, cerca de seis meses antes de nos deixar, foi aqui. Estávamos as duas tão felizes por estarmos finalmente sós, por nossa conta e risco, que poucas palavras conseguem descrever o bem que soube aquela tarde de Setembro de 2006, alcançado que estava esse sonho de independência que alimentei por tantos anos. As duas com a vida toda pela frente, cheias de sonhos por sonhar, esperanças por cumprir, metas por alcançar. Sentadas na muralha, saboreámos o nosso último gelado juntas, sentimos o mar juntas pela última vez, e demos as últimas gargalhadas que nos foram permitidas, totalmente alheias ao espectro dessa palavra a pairar solene sobre as nossas cabeças. 

Último, última, último, última. 

Depois dessa tarde, só os meses penitentes de hospital em jeito de doloroso retardador à dor, e depois o vazio. Um vazio brutal e incólume, adequado à dor que é perder alguém que se ama tanto, alguém que se ama mais que tudo.

Foi também aqui que meses depois se iniciou o delicioso processo de devolução à vida. A despedida dava agora lugar ao encontro, à excitação do desconhecido ainda por acontecer. O gerar de uma vida nova a ter lugar diante dos meus olhos, e sempre este lugar como pano de fundo, perfeito para todas as ocasiões.

Há sítios assim mágicos, que nos marcam a vida e são verdadeiros bálsamos quando a alma precisa daquele aconchego especial. Aqui ri e chorei, fui feliz e apaixonei-me, fiz amizades que vou levar para a vida e por cá continuo, a querer ser mais e mais feliz. 

E pelo meio fica sempre bem aquele Porto, que tristezas não pagam dívidas e sempre se revigora o espírito à força desse mosto perfeito.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Sempre uma claustrofobia, um pavor de chegar lá dentro, ao que carrega fundo e escuro num recanto da alma. De pés nus, um sentir a terra que suga as forças, para logo as devolver mais plenas do que nunca. Porque depois de cada tempestade, sempre vem uma bonança. Uma paz ao espírito e ao corpo igual a nenhuma outra à face da terra. Porque quando se é destinado a ser uma divindade, não se pode simplesmente remeter à posição plebeia do comum mortal. Se nasceste para ser grande, sê-o em plenitude, mas sê o que és, replica aquilo em que acreditas, entrega-te sem reservas ou juízos de valor. Porque um dia virá em que saberás que foste feliz, completo, realizado. E todas as dores, todos os espinhos, todos os tecidos rasgados, todas as feridas abertas, todas as tormentas, todos os podres e todas as máculas terão valido a pena. Porque foste humano, andaste descalço, amaste, fodeste, comeste e bebeste e fumaste e deixaste uma parte de ti nessa matéria a que chamam Terra. Terra Mãe, chamam-lhe alguns. Abre a janela, afasta essas portadas e deixa a luz escorrer por ti abaixo, encher-te de guerreira um pouco mais para logo a seguir lançar-te aos leões. 

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Olhos

Pele

Cheiro

Reviras os olhos como quem simula impaciência, como se não te fosse saber bem o tempo que tens pela frente. Sério, fixa-los nos meus olhos, porque sabes que só isso me desarma. Porque quanto tudo o resto falha, sabes bem que te basta inclinar a cabeça, dirigi-los na direcção dos meus, e não há defesas nem máscaras que me socorram.

Deitas-te de lado ao meu lado, a cabeça apoiada numa mão, enquanto a outra irrequieta me viaja pelas costas, impaciente, aflita, sequiosa, perscrutando cada centímetro de pele sem cerimónia nem parcimónia. A tua pele toca a minha, e até o mais ínfimo pêlo do meu braço se eriça em contemplação, antevendo o cerimonial por acontecer.

Derrotada, viro-te costas. É incomportável o magnetismo que o teu olhar imprime ao meu, que a tua pele entrega à minha. Mas o cheiro da tua pele lavada não estava nos meus planos. E se ingénua julguei que assim se acalmariam os ânimos, rapidamente me desengano, para desvairada procurar o teu odor frenético, estímulo tão ou mais fatal quanto os teus olhos ou a tua pele.

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Observou-os palmilharem a entrada do parque juntos, como se de um casal se tratasse. Achou-os bonitos juntos, como quase todas as pessoas que podia observar à sua volta. Mas quando a estrada em que seguiam se bifurcou, um tomou a direita, o outro a esquerda. Ela sentou-se à beira de uma estátua enquanto ia brincando com o Jack Russell que trazia consigo. E ele fumou o cigarro que acabara de enrolar, à medida que ia passando a mão pela cabeça, como quem enaltece o sentimento trazido pela paisagem de casas, colinas e antenas que tinha à sua frente.

Ela não podia estar mais bonita naquela tarde. Vestido arroxeado de cinto à cintura, sandálias rasas, óculos escuros e o cabelo impecavelmente arranjado, como se fresca pela manhã tivesse acabado de sair de casa. E toda uma maneira de sentar, de pousar as mãos no colo, até os trejeitos empregues quando para longe atirava o pau que o Jack Russell lhe devolvia em menos de nada.

Já ele primava pelo desarranjo da t-shirt riscada, mais caída para um lado que para o outro, e pelo desgaste das Paez já meio rotas que trazia calçadas.

A rapariga que absorta lhes apreciava a interacção estava capaz de jurar tê-los visto trocar uns olhares furtivos, até porque já se tinham topado à chegada. Ela a olhar na direcção dele – quando no fundo podia estar a olhar para outro lado qualquer – e ele meio que de esguelha a olhar na direcção dela – quando possivelmente estava só a admirar o Jack Russell, o pastor alemão e o bulldog que por lá também andavam. E ela apertou os olhos com força, num desejo irracional de que dali saísse uma história de amor, que na sua cabeça estava já a acontecer. Era só ele ter arrastado as Paez meio rotas até ela, ou ela ter esvoaçado o vestido até ele. Mas eis senão quando ele se levanta para inesperadamente deixar a observadora extasiada e dar um destino final ao romance que afinal nunca existiu. Dirige-se ao ciclista que acabara de chegar e a quem pelos vistos parecia conhecer, para dar início ao mais descarado flirt, entre olhares e risinhos, sem descurar os nada inocentes toques aqui e acolá. A rapariga do Jack Russell dir-se-ia não ter escondido uma réstia de descontentamento. Ou estaria a observadora só a querer esticar mais um pouco uma história que afinal se resumia à sua desmedida imaginação?

Estremunhada pelo infrutífero devaneio, projectou o corpo para trás, deitou a cabeça na relva e abstraiu-se dessas prosas queirosianas que trazia na algibeira para todas as ocasiões, para todos os lugares. Mais acima na relva, alguém dedilhava numa guitarra uns acordes melosos, acompanhados de uma tímida voz fina de timbre brasileiro, e a música ia-a submergindo mais e mais numa aquosa ondulação de despojamento e felicidade. De sorriso nos lábios, sentiu a humidade da relva entranhar-se-lhe nas roupas, contrariando os malfadados 40° que deviam estar fora do jardim. As folhas das árvores não podiam estar mais verdes, o céu mais azul, e a sua alma mais cheia.

Num raro momento de tranquilidade, pensou para si própria um cliché, coisa que abominava, mas cujo sabor delico-doce não pôde evitar. E soube nesse exacto momento que se morresse agora, morria feliz. É aquando desta inócua constatação que um beijo no ombro a traz de volta à realidade.

Vamos embora?
Só mais cinco minutos?
Nada disso… hoje vens comigo para casa.


Pegando-lhe pelas mãos, levantou-a e levou-a para casa. Outro beijo no outro ombro selou a despedida, e envoltos do bucolismo do jardim, foram para casa dele criar outras histórias compostas de outras matérias. 

terça-feira, 9 de julho de 2013

Sempre por alturas de as paredes do útero se lhe começarem a desfazer, dois gritos agudos a tomarem-lhe conta das vontades. A de foder. A de escrever. E uma violência atroz mandava-a contra as paredes do seu ego fodido, e desmaiada caía ao chão. Porque dos fracos não reza a história. Mas das hormonas também não. E quem é que quer saber de paredes de úteros em decomposição, de cólicas desumanas, de sangramentos épicos, de tensões pré-menstruais. E depois de frenética arrancar de dentro dela todas as tensões, todas as letras palavras adjectivos e pronomes, cair jogada pelo soalho rústico de madeira e não mais acordar, consumida de monstros e de horrores, fobias e achaques femininos. 

Porra, ser mulher é foda.