sábado, 22 de fevereiro de 2014



Uma vez a minha cara apareceu pintada numa parede. Não sei se retrata um anjo uma rainha ou uma mulher para amar para a vida, daquelas que não se quer perder nunca. Depois sei que essa imagem passou a retratar uma mulher calculista, manipuladora, fria, vingativa. Oh, pudesse ao menos ser assim. Mas porra, não sou. Tu melhor que ninguém, devias saber disso. Foda-se, carrego no peito um coração que ferve e sangra sempre, mas sempre. E queria muito ter a força de odiar, mas o ódio não nasceu comigo, foi-me ensinado e queria muito que me ensinasses a ser mais como tu. Assim a julgar sem me preocupar, assim a agir e a me reflectir, assim a pintar a história em vez de a escrever. A pintura compromete menos, a palavra já não se retira, uma vez proferida basta para atingir o outro no meio da cara e deixá-lo assim nu, só, desprotegido e inenarravelmente indefeso. O corpo amiuda-se para mais um baque, para mais um confronto. Vou levar de frente com a dor e deixá-la embrulhar-me num novelo de mais mil outras dores, porque depois vou-me agigantar e sacudir de mim o que estiver a mais. 

Só tu não estás a mais, nunca estiveste. Quanto muito estás de menos. Porque vou ter uma varandinha florida onde te podias aninhar comigo e pensar em nada e em tudo, desenhar as caras um do outro e dos que ainda não conhecemos, tocar-te na mão e lembrar-te do que me fazes sentir e do quanto fazes de mim tão melhor. Tão melhor que agora estás de menos e eu estou uma fracção indecifrável sem solução à vista. Que sou um monstro, que não sou vítima, que mereço tanta responsabilidade nos actos e nas escolhas como qualquer outro. Não me dês as costas, que eu dou-te a mão e levo-te para um sítio dentro de mim que tu não conheces. Um sítio onde habitaste e agora te esqueceste de como era ameno, destinado a ser, o teu e o meu espaço.

Mas só tu não estás a mais, nunca estiveste. E quando finalmente me cortares as amarras, eu deixo-me ir. Mas por enquanto, fica só assim mais um bocadinho. A raiva afinal também é um sentimento, e ninguém disse que de sentimentos só íamos ter os bons.   

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014



Ausência

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

Carlos Drummond de Andrade

Engraçado como as palavras sempre nos encontram nos momentos certos. E vezes há em que os momentos se querem privados das palavras, em que fingimos que não nos vemos, não nos escutamos, nunca existimos nem sabemos quem fomos ou a sombra do que somos. Como estará hoje o nosso Oeste, teu e meu, pensei hoje de manhã quando acordava. Que podia ser uma segunda-feira antiga em que o despertador me arrancava dos teus lençóis, me roubava ao abrigo dos teus braços, para vil me oferecer ao caminho de volta à cidade. Caos, neblina, o sol que agarra no caminho do campo para a metrópole. Se hoje estivesse o tempo bom e a cidade não me chamasse impiedosa, podíamos ir tirar medidas ao mar, contar-lhe as ondas, sorvê-lo nuns beijos deixados à deriva numa falésia anónima. Pego-te pela mão e mostro-te um stencil, uma mensagem deixada num casal que dizem ser dos Patos. Tão linda, a vossa história, tão parecidos, tão doces. Custa-me ver-vos assim, sabes? Parecem uma ruína daquilo que um dia foram, e nas falésias não há curas nem palavras sábias que adormeçam a dor nem aliviem o mal de que vocês padecem. Há uma varanda para o infinito, de onde abraço o mar e me jogo ao desconhecido e à oportunidade. Respiro, e sou inteira, outra vez, só eu, insana impune indefesa.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014



Parece que o corpo não realiza nada, o corpo deixa de existir, e por baixo do peignoir de seda há apenas movimento. Um movimento que realiza as formas de um corpo, por baixo do peignoir de seda. E eu me pergunto, quando ela sobe a escada, se não é um corpo assim dissimulado que as mãos têm maior desejo de tocar, não para encontrar a carne, mas sonhando apalpar o próprio movimento.

Chico Buarque in Estorvo

Estou emocionalmente indisponível. Não porque alguém me ocupe o coração, não porque seja uma intrépida feminista, não por falta de opções. Estou emocionalmente indisponível desde que me coloquei no centro exclusivo e primordial das minhas prioridades, desde que me interessei em pensar melhor a complexa personalidade que tanto me aflige e inquieta, em desvirtude de me deleitar nas personalidades de outros, que muito me acrescentam mas invariavelmente me falham num ou noutro momento.

Por gostar mais de mim do que alguma vez imaginei vir a ser possível, e sem pudor algum de o gritar a plenos pulmões sob pena dos mais variados julgamentos, amanhã não vou ter um jantar de solteiras nem um jantar de solteiros nem um jantar de “encalhados” – e usando esta palavra friamente matei o lirismo que nesta crónica restava - nem o que quer que seja que as pessoas que se sentem sós no dia 14 de Fevereiro tendem a fazer para disfarçar ausências, para camuflar uma solidão que em última instância depende tão só e apenas de nós próprios para ser extinta. Não há solidão maior do que a de não nos reconhecermos mérito suficiente para nos fazermos felizes sem dependermos da outra metade da laranja. E sem desprimor algum do bom que é encontrar por aí uma meia laranja simpática que nos encaixe bem, mas é tão mais compensador perceber que afinal nos bastamos, que afinal sempre nos bastámos… e só não o sabíamos!

Vou só ali mimar-me mais um bocadinho. Feliz dia dos namorados e amem-se sempre muito.

domingo, 9 de fevereiro de 2014


Ando com um choro atrasado, uns três ou quatro dias sensivelmente. Enfureci-me, ouvi RATM até não poder mais, e depois fiquei à espera de chorar, mas o choro não veio. Pensei ludibriá-lo com a ajuda de um filme. Choro em quase todos, identifico-me sempre com esta ou aquela cena onde revejo sentimentos que eu própria já senti. Escolhi um filme com elevado potencial lacrimejante, mas ao fim de trinta minutos já dormia. A raiva afinal deixou-me entorpecida, vulnerável ao cansaço acumulado de todas as noites mal dormidas. O álcool tão pouco fez alguma coisa por estas lágrimas que insistem em não sair. Bebi, mas ao invés de chorar, sorri apenas. Abracei a minha amiga, e juntas sorrimos ante a imprevisibilidade do que nos vai acontecendo, e nem pela força do abraço sincero que me deu me venceu a vontade de (não) chorar. Então música, senhores. Os mais graves acordes, as delicodoces melodias, rimas arrastadas de amor, de despedida, de querer sem poder ter. 

Nada.

Zero. 

Nem uma lágrima que se pudesse ver. E ainda assim não o sinto reclamar. As costas não se prendem mais de ansiedade nem de dores camufladas, a sede não é mais incontrolável - sim, porque ninguém aguenta beber cinco litros de água num só dia - a melancolia não é mais senão um passageiro estado de espírito com pouco tempo para se acomodar. O corpo parece ter-se estranhamente habituado à não tristeza, a um conquistado e merecido optimismo. Mas quando voltarei afinal a chorar?

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014



Dizer adeus cansa. Cansa muito. 

Despedir daqueles que amamos, renunciar a coisas que nos fazem mal e que sabem bem, deixar que o(s) outro(s) levem com eles partes de nós que só existiram naquele tempo, naquele lugar, com aquela pessoa. 
Despedir de memórias que inevitavelmente foram sendo guardadas em recônditos cantos de nós e onde já não têm mais lugar. 
Despedir de pessoas que nos marcaram o tempo de uma vida, porque um oceano separa as nossas casas, impedindo um desejado abraço, um olhar que no silêncio tudo diz, o aconchego de uma palavra que se oferece de mãos abertas, coração estendido.

Há pessoas que nos vincam forte as emoções, que nos desarmam de amor, que preenchem sem pedir nada em troca. Durante muito tempo, procurei convencer-me - força das nefastas circunstâncias da vida - que "pior não pode ser". Lá atrás já foi muito mau, mau demais para um só coração suportar. Que tudo o resto só podia ser o bom, o belo, o desejado. 

Errada, estupidamente errada, vencida de defesas projectadas pelo longo penar. 

Tenho 28 anos, a entrar nos 29 dentro de dias. A ter mais uns (optimistas) 60 anos pela frente, terei apenas vivido um terço da minha vida. As probabilidades estão contra mim, portanto. 60 anos são aproximadamente vinte e um mil e novecentos dias, noves fora nada, bissextos coiso e tal. Vinte e uma mil e novecentas possibilidades deste coração voltar a ser magoado, enganado, desiludido. E a verdade é que nada me pode preparar para o que está para vir. Nem mantras repetidos à exaustão, nem desfiadas ladainhas como quem ora, nem cartas jogadas numa mesa. Nada pode confirmar ou desmentir se o que vem é bom ou mau. Que a vida tem essa misteriosa coisa de ter que ser vivida para ser vida de verdade. 

E dizer adeus é e sempre será das coisas mais dolorosas de fazer. Seja de pessoas, seja de memórias, seja da imagem percebida que tínhamos dos outros, às vezes de nós mesmos. 

A despedida começa agora, no encontro. Tudo o resto é emoção.