segunda-feira, 24 de março de 2014

es(tática)



O silêncio que veio ocupar o teu lugar tem a capacidade por vezes de ser violentamente ensurdecedor, vetando a sequer remota possibilidade de produzir pensamentos dignos desse nome, tal é o espaço vazio que força dentro de mim.

Podias ser uma cidade turbulenta, frenética, pintada, desorganizada, sufocante, arrebatadora, barulhenta.

Como podias ser floresta, confusa, indefinida, selvagem, fresca, impenetrável, caótica, barulhenta.


Mas não, escolheste ser silêncio, e a privação do som pesa mais que a cacofonia que ninguém entende. O silêncio também não se entende, especialmente quando faz doer. 

sexta-feira, 21 de março de 2014

sentidos



A evolução requer que se reúna o batalhão dos sentidos. A construção de novas memórias olfactivas, o desconstruir dos pontos de vista, a reorganização interna dos sons, a procura de paladares desconhecidos, a sensibilidade à flor da pele estimulada por novas sensações. Não é fácil arrancar o rosto mais familiar de todos da cidade que nos é também a mais querida. Menos fácil ainda é arrancá-lo à linha de horizonte que desenha o mar, porque o mar é igual onde quer vá, é arrancá-lo às nuvens que se desenham no céu, porque invariavelmente o céu e as nuvens são iguais de onde quer que os veja, é arrancá-lo a todos os sítios onde insiste em sobreviver estampado, vívido, incómodo. Embora não deixe de ser um rosto difuso e cada vez mais esbatido pelas falhas da memória, é essa mesma memória que traiçoeira mantem vivas as ausências que mais doem, renovando-as onde já não fazem falta nem são desejadas, mas mantendo-as vivas. Continuo à procura de sítios onde não substituam moléculas nem poeira cósmica deixadas pela tua passagem. São poucos, alguns já os conheço e outros hei-de descobri-los. Até os ter todos para mim, vou contornando um vulto teu que volta e meia se me assoma, para me lembrar das palavras do poema, que o amor é uma doença, quando nele julgamos ver a nossa cura.

quarta-feira, 12 de março de 2014

Carnaval dois-mil-e-catarse ou de como se faz uma foto suruba


E agora, o Brasil.

Viver um Carnaval no Rio de Janeiro foi indubitavelmente das experiências mais exigentes a que o meu corpo já sobreviveu. Empurrados pela cerveja e entorpecidos pelo calor, os membros sucumbem constantemente num bizarro limbo de dor e de prazer, mas nunca, nunca desistem. Mais um bloco, mais uma música, mais uma latinha/piriguete divida com dois, três amigos, um sacolé para refrescar, e segue outro bloco, que "o tempo ruge e a Sapucaí é grande".

Compromisso é coisa que o Carnaval carioca desconhece. As videntes que jogam búzios prometem pelas paredes fora trazer a pessoa amada em três dias. A pessoa amada está a cada esquina, e se a perdermos hoje, amanhã será desapegadamente de outro folião que calhe a aproximar-se-lhe. Já beijou hoje, oiço-os perguntar a uns e a outros, ah, então me beijaPuxa, beijo gostoso o seu. E é de beijos que se alimenta a festa mais desinibida de todas, a carne vale e vale tudo pela carne. Não se pode esperar que um compromisso sobreviva umas fugazes vinte e quatro horas. Uma hora talvez, e com sorte o destino dita o resto.

Beijos e folias à parte - que o meu corpo ainda a reclama - no Brasil fui descobrir amores e poesias raros de encontrar, e tão prazerosos de preservar. Ninguém me avisou que para além de fisicamente desafiante, esta seria uma viagem emocionalmente vertiginosa. E eu que das férias só costumo trazer cansaço acumulado e preguiça de voltar ao trabalho, desta vez trouxe um coração inundado de amor surpresa, de amigos que abraçam e me deixam impotente de felicidade, que me fazem chorar a bandeiras despregadas no aeroporto, desmastreada e perdida de voltar a este frio e a este país que julgava quente e percebo agora ser afinal moderadamente ameno, amenamente caloroso. Sem esperar, dei de caras com um povo delícia, que abraça sem meias medidas, que ama sem preconceitos, que beija como quem come um iogurte. E senti mais do que nunca o “peso” da herança comum que partilhamos, da história que construímos juntos, da bênção que é chamar o Brasil de país irmão. Ilusão da língua comum ou efeito das amizades encontradas, o certo é que nunca me senti tão em casa como neste país quente onde os insectos me devoraram sem tréguas, onde o calor impedia a maquilhagem de se me segurar no rosto, onde a cerveja substituiu a água durante dias a fio, onde a temperatura é tão alta que o mar quase não chega para a ludibriar.

Porque nasci portuguesa. Mas se perguntassem, teria escolhido nascer brasileira.


segunda-feira, 10 de março de 2014

Quem aMa Clara (com um considerável atraso de vários dias)

E lembro-me de ficar pendurada nas fotos dela, tentando adivinhar o que por aí vinha. Quem era essa total desconhecida de imagens com cores intrigantes, ar maduro e olhar pitoresco de menina curiosa. Numa foto aparecia na praia de flor na cabeça, e isso só podia ser um bom sinal, pensei. Tinha fotos de chuvas e de fumos, e tinha fotos de óculos amarelos atrevidos na ponta do nariz. E lembro-me de pesquisar o significado das palavras estranhas que trazia bordadas nas costas. 
Com o tempo percebi que a raridade é o dom de ser de algumas pessoas que pisam o chão deste mundo. E cruzar caminho com esta menina do Piauí é sinónimo de amor sendo deixado de leve e de rajada no vinco da nossa vida, porque quanto se intercepta um espírito assim, o instinto é ficar. O instinto é procurar, é amar, é dar e é querer ser melhor. E podia dizer que a partir de hoje nada muda. Que o oceano que a partir de hoje nos vai separar não vai minar os laços que criámos, que as tecnologias nos vão manter próximas, que não vou sentir a tua falta. Mas estaria a mentir, com quantos dentes tenho na boca.


Porque a partir de hoje tudo muda.
Porque nunca mais vou tomar um banho sem levar atrás o meu telemóvel com a repetitiva playlist que lá tenho dentro, coisa que aprendi contigo (a ouvir música no banho, não a ser repetitiva).
Porque vai ser difícil continuar a confeccionar pratos no forno sem lhes pôr batatas de palha em cima, ou a comer pratos com molhos, sem novamente os adornar com as malfadadas batatas que só engordam, outra das muitas coisas que aprendi contigo.
Porque tornaste o nossa economia familiar partilhada fiel subscritora da revista Vertbaudet, apesar de nenhum de nós ter filhos nem crianças por perto a quem comprar roupas por catálogo – admite, fizeste isto para nos fazer lembrar (ainda mais) de ti cada vez que a revista chegar?
Porque quando fizermos uma limpeza à cozinha, provavelmente vamos encontrar uma das tuas mil listas caída nalgum lado, seja ela uma lista de compras, de afazeres ou de coisas muito importantes de que não te podes esquecer, que tens sempre muitas. Porque agora temos um pinguim chamado Albino que vive por cima do frigorífico e vigia cada passo que damos, e sempre me lembro de ti quando o vejo empertigado no fatinho preto e branco. Porque temos receitas de comidinhas boas escritas em post-its ali ao pé do fogão que ainda ninguém teve coragem de arrancar. Acho que vão lá ficar para sempre. Tal como o amor que me ensinaste a (re)viver. E por isso te devo tanto. 

Por tudo isso e por quanto mais não cabe nas palavras, mas se ilustra nas lágrimas que deixei no Rio embrulhadas num dia de águas de março, e porque se em alguém revejo o amor incondicional e despretensioso, é em ti, Ana Clara.