quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

metarmofosis

photo @ Telmo Rocha Silva 2014

Não sei em que tenho pensado nem quem tenho sido. Olho para trás e constato que por vezes, para uma coisa nascer, outra tem que morrer. E lá atrás ficou um caminho que podia ter sido o meu, mas ironicamente, não chegou a sê-lo. Senão, uma passagem de um violento luto, para uma vida mais plena, mais fluída, mas minha que dos que tanto me magoaram. Porque nos pensamentos já só viajam boas intenções, desejo puro de amadurecer e me dar à plenitude das coisas sem nelas me emaranhar. E tu, terno e apaixonado, seguraste na minha mão e puxaste-me de um lado ao outro, das trevas à luz, de um cadáver moribundo a metamorfose ambulante, todos os dias eclosão explosiva. Amor, amor, amor, oh tanto amor, meu amor, tanto amor que nunca te cheguei a dar. Porque no fundo de mim adormeci, acossada à pura felicidade que era ter-te só para mim, respirar o teu ar, partilhar a tua cama, ser a tua, a tua única, a primeira, a última, todas elas e nenhuma delas. Querias? Querias que tivesse sido assim diferente, assim ligeiro, assim assim, como tão bem sabíamos ser? Aventurados tantas vezes sem reserva cidade adentro, fodemos todas as esquinas, marcámos todas as praças, demos as mãos em todos os miradouros. E agora o que tenho, o que me deixaste, meu amor? Sabes o quê? Uma cidade que arde insana dentro de mim, que me corrói e provoca e me derrota para logo a seguir me levantar. Uma cidade que me faz e desfaz a cada olhar, a cada vez que te vejo menos lá fora espelhado nela, e dentro de mim, perdido, intenso, aquele olhar que só tu sabes. Fui tua, meu amor, e de mim dispuseste e desfizeste em mil pedaços que agora se reúnem, olha só, quem diria!

E eu que te amei tanto, meu amor!

terça-feira, 28 de janeiro de 2014



O esforço de tentar deslindar traços tornava-se cada vez mais inglório, pesarosamente infrutífero. Abandonou por isso a ideia de tentar compreender onde começava um corpo, onde acabava o outro. Livres de geometrias que os delimitassem, uma linha levava à outra, fazendo dum a perfeita extensão do outro, numa imprecisa matemática cuja solução não seria senão a de um encetado deleite que parecia não mais acabar. A volúpia dos gestos deixando a cada avanço um indelével rasto de lascívia, a nudez sensual à luz exposta, a carnalidade desmedida e incontrolada. Com ferocidade a pele é mordida, repuxada, natural terreno de explorações que se presta a ser.


Os odores perdem-se nos sabores, os membros aleatoriamente enlaçados, confusão, pausa. Um trago disto, um bafo daquilo, inebriam-se os sentidos uma vez mais e outra viagem logo começa. Do prazer, não ficará senão um quarto ocre, abafado, onde dois corpos jazem despidos e abandonados, inertes à figura que por fim os abandona.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014



E eis que sinto que em breve nos separaremos. Minha verdade espantada é que eu sempre estive só de ti e não sabia. Agora sei: sou só. Eu e a minha liberdade que não sei usar. Grande responsabilidade da solidão. Quem não é perdido não conhece a liberdade e não a ama. Quanto a mim, assumo a minha solidão. Que às vezes se extasia como diante de fogos de artifício. Sou só e tenho que viver uma certa glória íntima que na solidão pode se tornar dor. E a dor, silêncio.

Clarice Lispector in Água Viva

A atmosfera empestada de hálitos matinais e cigarros engolidos à pressa por força do frio que lá fora envolve os corpos. Nos vidros condensa-se a respiração pesada daqueles que esta manhã se juntaram a esta viagem que há-de passar o rio, a ponte, os barcos e respectivos contentores. As manhãs revestem-se de acinzentados laivos cinematográficos, os vultos arrastam-se pesarosos, iguais todos os dias, amarrados que estão às dores que carregam debaixo dos casacos das luvas dos cachecóis.

Sofro de os ouvir, condoo-me de os olhar. Esta não é a vida que projectámos, estas não são as viagens que planeámos fazer. O rio, brutalmente silencioso, encara-nos com desdém como quem convida a zarpar, como quem desafia prioridades. Eu respondo-lhe quando calha, já vou, hoje ainda não é o dia, espera. Os outros não sei se o fazem ou se se estremunham sem considerar sequer levantar as amarras e vestirem-se dessas águas que sem vergonha nos desatinam e espicaçam os mais calcados desejos.

Estremunhada também eu desde aquele tal dia. Da varanda, não mais senti um olá secreto que outrora se me estendia, senão uma malfadada aura a ti que porfia em cobrir a minha cidade desde que nela não vivemos mais, e tudo o que nela habita – eu incluída, o meu corpo incluído, a minha alma incluída – qual nevoeiro sebastiano que não há meio de se dissipar. Ouvi em confidência a alguém que cada vez que desse nevoeiro respiro, que cada vez que dessa aura levo para dentro de mim, nela te encontro e que por isso não te consigo tirar de dentro. E que quando esse nevoeiro finalmente desaparecer, da tristeza não ficarão sombras, da ausência não sobrarão mágoas, das saudades vivalma alguma soçobrará mais. Apenas um amor terá ficado por cumprir. Ou não. Mas essa já é outra história, e preciso de ti para a contar.

domingo, 19 de janeiro de 2014

Caraphernelia



No longínquo e nada saudoso ano de 1996, a Sheryl Crow reclamava nuns versos melosos

If it makes you happy, it can't be that bad, if it makes you happy, then why the hell are you so sad?

Não raras vezes, pergunto-me o mesmo na observação esporádica de terceiros que um dia já foram os primeiros. A tristeza e a confusão são indícios claros de que por vezes nem sempre a pessoa que temos ao lado poderá ser a melhor a que podemos (devemos) ambicionar. E penso no quanto me irrita a psicologia de bolso com que não raras vezes tenho tido que lidar. Se sofria e tudo o que me apetecia era tão só desaparecer, calma, tens que te animar, as coisas vão melhorar, vais dar a volta. Se sorrio e pego o touro pelos cornos e a vida finalmente se perspectiva mais excitante do que nunca, calma, vê lá se não estás a camuflar sentimentos, se calhar é melhor falares sobre o assunto. Por muito que pense nisto, sinto que parece nunca haver aos olhos dos outros uma maneira certa de lidar seja com a dor, seja com a excitação. Se uma é demais ao ponto da exaustão, a outra tem o dom de insuflar de adrenalina cada célula do corpo, ao ponto deste quase implodir na ânsia da antecipação. 

Dê por onde der, é imperativo recordar que em primeiro lugar, importa exigir para nós próprios o melhor dos outros - algo de que ironicamente me privei durante mais tempo do que seria razoável. Talvez por isso tenha custado tanto a derradeira despedida. Sabendo-o o melhor naquilo que era, sabendo também que não era o melhor para mim. As verdades doem, e assim cruas ainda mais. 

E a esse doloroso acto de criar espaço dentro de nós às mais difíceis emoções, se chama viver. E ninguém avisou que ia ser assim.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014



Transpiras Verão a gotejos largos, destilas dilecção em cada poro, puro prazer a cada pronúncia, estival percepção sensorial em que me deleito sem nunca das horas saber.

Outonais gracejos os que me jogas em querendo ser engraçado. É tempo de as folhas largarem as árvores, desapego por todo o lado, imperativo o tempero a muito pouco e a quase nada.

Do Inverno, alteras-te alterando-me em aliterações, o afecto é frio, faz jus à estação, arrefeço rápido para logo fingir acobertar-me nos teus longos, sazonais (a)braços.

Febril é a Primavera que me estendes despida, de despedidas sabemos nós, de desprendimentos e de correrias insensatas. E se para ti corro e não calho a acertar-te no colo, imprudente resvalo ao chão onde despontam as primeiras ervas da temporada. Que ao menos me amparam a queda, pois que de chãos pontiagudos está o meu corpo macerado e calejado.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

photo @ Tiago Reis | Arábia Saudita 2012
A dificuldade reside ali mesmo, óbvia, rectilínea, incontornável. No decifrar das estradas, no deslindar dos sentidos, no desmistificar das opções. Somos afinal um só caminho ou a junção de vários? A fragmentação das nossas escolhas ou a soma das partes? Acredito que o poder último reside em sabermos no fundo e de verdade quem somos afinal. Soberanos de nós mesmos, e dependentes não das mil lutas com os outros e contra os outros, senão apenas da única revolução que se impõe: a revolução feita por nós, cá dentro, desde o momento em que percebemos a verdade, a aceitamos, e nos comprometemos a sermos melhores.

Pois que só assim será possível almejar um dia à felicidade.













De repente, o dia 6 de Janeiro tornou-se o dia em que começam promoções, em que estreiam séries, em que uma qualquer efeméride é assinalada. Em todo o lado 6 de Janeiro, 6 de Janeiro, 6 de Janeiro, numa ameaça gritante à abstracção que neste dia se impõe, mais do que nos outros. 

Precisamente seis dias depois, no dia 12 de Janeiro, outro seis se projectaria a celebrações, se houvesse ainda o que comemorar. 

Bonitas, estas aritméticas.   

6 no dia 12, 30 no dia 6, 6 afinal é 0

Especialmente quando são um reflexo da tábua rasa a que finalmente me agarrei para não ir ao fundo. E não é que estive lá tão perto, mas não afundei? Mas agora o quarto é finalmente feito de paredes brancas. Uma premonitória mancha negra de um homem que caminhava solitário num túnel sombrio não existe mais. Acabou, desapareceu. De candura se veste agora cada canto para onde olhe. E a sensação de rendição é impagável. Rendi-me às evidências, aceitei a derrota, levantei a cabeça. 

Chega de números, vamos falar de emoções. 

domingo, 5 de janeiro de 2014

Dispensa, keep closed



Um cigarro queimava nervoso numa mão, na outra esquecia-se um Porto aquecido à força do calor humano que enchia o tosco bar da Mouraria. O ano mal começou, e já estamos novamente a falar em despedidas. Cravam-se-me os olhos no amarelecido que a parede oferece, embrutecida do tabaco e dos anos, numa vã tentativa de abstracção de mais um adeus, até já, adorei estes dias, volta em Setembro, vou tentar, não sei, os festivais (outra vez, a vida repete-se tanto).

É a primeira deste ano, podia ser a última de umas duas ou três do ano anterior. A verdade é que as despedidas já não fortalecem nem destroem. Já fazem parte. Porque ainda há pessoas que as distâncias não têm a força de nos roubar, a ousadia de pôr à prova a tenacidade com que nos gostamos. 

Das muitas vezes que a vida me colocou entre um olá e um até (nunca) mais, entre um agora e um não se sabe se mais alguma vez, esta é sempre a mais agridoce dessas vezes. Meses podem passar sem saber de ti, se estás feliz ou se seguras o coração nas mãos, mas sei que quando te revejo, de alegria me encho sempre, porque há amizades assim, que perduram no matter what, e a tua é inquestionavelmente uma delas. 

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