Encho os pulmões de ar, o
comprimido já fez efeito e já consigo respirar sem dor. As dores nas costas não
me largam, malvadas. Seja a idade, o stress ou a ansiedade, o que é certo é que
já não passo sem yoga, massagens periódicas, comprimidos em S.O.S. e uma ou
outra sessão de fisioterapia. E não, não tenho sessenta anos, ainda não vou a
meio dos vinte e nove e já me pesam os balanços que antevêem os trinta. Os
balanços, e as dores nas costas, malvadas. Num cenário optimista (ou será
pessimista?...), um terço da minha vida já lá vai, o que já me confere alguma
autoridade para tais balanços, olhar para trás e para frente, apontar baterias para
os sítios “certos”. Ainda não casei, nem sei se alguma vez o farei, e o pesado baú
de madeira que mantenho desde a infância já pouco enxoval guarda, um pano ou
outro de cozinha que tenha sobrevivido às minhas investidas, e aqueles lençóis
fora de época que nunca hão-de servir para nada. De resto, pouco me sobra das
incumbências provincianas com que fui educada, se é que se pode chamar educação
àquilo que me foi (ou não) transmitido enquanto crescia numa aldeia onde as
mentalidades continuam impermeáveis e as línguas se preservam afiadas.
Duas longas relações findas
porque pura e simplesmente não tinham que ser, outras tantas amizades purgadas
pelo tempo, e descubro agora os prazeres da individualidade mas também de me
rodear exclusivamente de pessoas que me querem bem, que me fazem bem, que me
fazem mais feliz. E enquanto cresci e cresço, demorei a percebê-lo, mas entendi
finalmente que o processo de amadurecimento não é mais senão a constante
aprendizagem da moderação das expectativas. Uma vez moderadas, tudo se torna
tão mais simples. Com seis anos, sonhava ser astronauta e explorar o espaço,
mesmo com as constantes ameaças do meu avô em me deserdar se eu não me tornasse
enfermeira de guerra. Nunca cheguei a perceber em que guerra me queria ele,
daquela altura recordo os conflitos na Bósnia e a guerra no Golfo, e não percebia para qual delas
iria eu nem que propósito teria isso para o meu avô. O certo é que não virei
enfermeira de guerra, muito menos astronauta, e acabei na mesma sem herança que
se pudesse ver. Lembro-me mais tarde de ver escrito nas portas dos bancos que encerravam
às 15h. Achei maravilhoso e convenci-me de que um dia ia querer trabalhar num
banco e sair às 15h para ir para a praia. Claro que à época ignorava o tom
premonitório de tal ambição, e também o quão errada estava em achar que ia ter
um trabalho onde saía às 15h. Mas isso já são outras histórias. Volvidos outros
tantos anos, apaixonei-me pelos direitos humanos, pela diplomacia e pelas
relações internacionais, e convenci-me de que podia salvar o mundo, trabalhar
com refugiados, levar água a aldeias remotas em África, fazer chegar alimentos
a crianças famintas, promover discussões acesas em fóruns onde estes temas
fossem a ordem do dia. Mais uma vez, a vida condicionou-me totalmente as
expectativas que por tanto tempo alimentei. A morte precoce da minha mãe fez de
mim e do meu irmão as crianças famintas e sedentas de uma mão que nos salvasse.
Mas não, não houve mão que nos salvasse, nem milagre que nos retirasse de um
cenário muito provavelmente drástico, não fosse uma vincada resiliência e
teimosa vontade de vingar. As mãos que nos salvaram acabaram por ser mesmo as
nossas, ao cabo de muitas horas de trabalho precário, mal remunerado, sem
benefícios, e dois anos inteiros sem saber o que significavam férias, viagens,
lazer. O alimento era a prioridade, tudo o mais era supérfluo. Deste período,
poucas relações sobraram. Arriscaria mesmo dizer que os dedos de uma mão são
suficientes para contabilizar os amigos que se mantiveram, não obstante a
turbulência a que me vi exposta. Ninguém tem paciência para lidar com uma
pessoa em luto atribulado, coroada por uma pseudo maternidade assumida em
relação ao meu igualmente órfão irmão, e uma total incapacidade financeira de
participar em actividades sociais. Não era de facto a amiga mais óbvia, nem a
primeira pessoa a quem se lembravam de ligar, invariável que era o meu “não”
aos convites recebidos, constante que era o meu desespero pelo futuro ainda por
vir, pelas contas por pagar, pela comida que o estômago nunca deixava esquecer.
Ainda noutro dia partilhava com um amigo a história - hoje quase engraçada, mas
à data sem piada alguma – do dia em que passei fome. Sim, dia no singular,
porque foi mesmo só um dia. Um final do mês dramático em que os parcos salários
chegaram para as responsabilidades mais imediatas, mas não para aprovisionar
dispensa nem frigorífico. Prometi a mim mesma que aquele seria o primeiro, único
e último dia em que passaria por uma situação tão limite quanto a de querer
comer e não ter poder de compra para o fazer. Mas isso já são lides para outras
conversas. E onde é que eu ia mesmo…? Ah, sim, nada como uma boa tragédia de
faca e alguidar para ver quem são os amigos dignos desse epíteto, e quem são os
que se limitam a figurantes. Assistem sentados e aplaudem, mas não participam.
E de figurantes acabam por não passar.
Moral da história? Moderar
expectativas é primordial, seja em relação aos amigos que vamos tendo, seja nos
romances que vamos alimentando e que invariavelmente falham, seja no trabalho
que fazemos, sabido está que estamos longe de salvar o mundo. Contextualizar o
que nos acontecesse, agradecer o bom e saber lidar com o mau. Sem esta
moderação, seremos incapazes de discernir os momentos que definem a nossa vida,
e a sensação pulsante e viva de sermos ou não felizes. E ninguém quer ver
turvos esses momentos, aqueles que superam todas as expectativas, das mais
humildes às mais arrojadas. É que é nessas alturas, em que a luz é mais clara,
os sons mais nítidos, os odores mais apurados, que a felicidade se insurge. E
ninguém a quer deixar passar despercebida… pois não?