quarta-feira, 26 de novembro de 2014

vizinha Lena

quarto


O meu quarto da cidade costuma dar-se ares de província, de tão silencioso que sempre fica. Só lhe faltam mesmo os pardais da província. No despido quarto de aldeia onde cresci, janela virada para a estrada, entravam sons de carros, de motas, de carroças e de tractores, do sino e do relógio da igreja - afinal, era o quarenta e um da Rua Principal, a rua que ligava o início do lugar ao largo da igreja, onde o mundo se resumia para começar e logo acabar - afinal, nada mas mesmo nada ali acontecia. Sons e os sons dos pardais. A vizinha Lena morava mesmo à minha frente e tinha árvores onde cantavam os pardais que me adormeciam quando me deitava de manhã, que me acordavam quando me levantasse cedo. 

A vizinha Lena, Quando fui viver para Roma em 2006 fiz questão de me despedir cerimoniosamente dela, porque achei que de velhinha e doente que estava, morreria enquanto eu estivesse em Itália. Fui, voltei, e ela aguentou. Aguentou Itália, aguentou Espanha, aguentou Brasil, aguentou todas as minhas outras idas e vindas. Pelo meio das viagens até a minha mãe partiu, mas a querida da vizinha Lena lá ficou, de pé, até hoje. Penso nela tantas vezes. E não a visito mais, porque se desfaz em lágrimas cada vez que me vê. Chora, chora muito, chora-me de amor sincero e das saudades que sente da minha mãe, da minha avó, do meu avô, e daquela nossa fase na infância onde ainda não sabíamos quão cruel a vida podia ser. Saudade daquela idade onde o que o meu mano mais queria era passar os dias pelos campos, alfaias agrícolas que o rodeassem, terras para amanhar, animais por alimentar. Francisco, onde andas? E íamos dar com ele a almoçar ou a jantar na casa de um vizinho qualquer a quem passara o dia a ajudar, de volta de alguma fauna ou de alguma flora. Uma vez desapareceu uma tarde inteira. A minha mãe desesperada, eu a chorar aflita no quarto a aceitar que nunca mais ia vê-lo, já só faltava seguir para a polícia. Fomos dar com ele, coisa mais amorosa desta vida, a dormir a sua sesta  dos quatro aninhos dentro de uma antiga coelheira que já não usávamos. 

Entre o tudo ficar estranho e o não termos consciência nenhuma do que vivíamos, passou não muito tempo. Os pássaros nunca deixaram de cantar, mesmo se na casa os barulhos eram dolorosamente ensurdecedores. A vizinha Lena nunca deixou de nos abraçar com tamanha ternura, a ternura que já não temos do avô nem da avó, e que todos os dias tanta falta nos faz. E os ruídos da Rua Principal nunca deixaram de invadir o quarenta e um, mesmo se os que de lá de dentro saíam pouco fizessem pela nossa salvação.

A província, sempre a província, vincada e amarrada agora e para sempre, ámen.  

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