domingo, 29 de dezembro de 2013



Açafrão-da-terra, cardamomo, coentro, gengibre, cominho, casca de noz-moscada, cravinho, pimenta canela. 

Como virgens noivas que algum noivo esperem, aguardam o momento em que amassadas no almofariz se hão-de abrir em sabores de outro continente, vendo levado ao expoente máximo todo o seu potencial sensorial. Apertadas umas contra as outras, em caril despertam, retiradas ao sono mole em que se viam até então adormecidas. 

Delicio-me no movimento que os teus lábios desenham enquanto falam encantados sobre especiarias. Encantada me encontro também, pendurada que fico na cadência de cada palavra que reproduzes, e que sempre me sabe a sabores que desconheço. De lacónico pouco tens, e descreves cada sabor e cada aroma como só um ser apaixonado poderia descrever o corpo do amante a que calhe entregar-se. E por distintos que sejam os sons que te oiço, em todo e cada um deles reconheço apenas o sentido da proibição, um instinto pecaminoso que invariavelmente remete para o eterno platonismo de que são feitos os ténues laços que nos prendem. O fumo que te ofereço à boca sabe também ele a interdição, e de to dar a conhecer me contento, por reconhecer como válida cada negativa que impera esta estranha e nunca começada relação. 

Da tua boca pudesse eu provar, e resolver de uma vez por todas esta incógnita que me assola. Saberás a cardamomo ou a café? A fumos ou a canelas distantes? Um sarilho, tu és.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013



Estou me criando. E andar na escuridão completa à procura de nós mesmos é o que fazemos. Dói.
Clarice Lispector in Água Viva

Tive em tempos um alpendre onde me sentava sem pensar para pensar. Ali tomava a primeira refeição do dia, prostrada à imutável beleza do verde, sorvendo apaixonada cada pintalgada sua que calhasse a encher-me de alegria a alma e os sentidos. Ali me sentei muitas vezes para chorar os meus mortos, e me sentei outras tantas para sentir e amar os vivos. Vezes tantas que não as sei contar foram as que ali me encostei com as minhas borboletas. Dias muitos, incontáveis e perpétuos, vivem colados ao mais fundo da minha memória, em que sentia o amor cambalear-se-me embriagado dentro do estômago, bebedeira apaixonada cuja ressaca ainda sinto tolher-me os movimentos. Em me vergar ao viver de uma vida como nunca houvera tido, feliz, doce, plena e transparente, dei por mim enredada em tanto amor, e de tanto amar o amor que sentia amar, em amor me desfiz para não mais me refazer. E desfeita e enfeitada, encetei a mais dura trajectória dos desafectos e das novas afeições.

As borboletas, essas teimam em não levantar voo. Frágeis mas tenazes, agarram-se-me ao estômago com quanta força têm e de lá se recusam a partir, numa maquinal vivência que as mantém reféns de um instinto ao qual não se querem ver presas. A última vez que me sentei no alpendre, de mansinho chorei a perda sofrida enquanto daquele verde me benzia uma última vez, e implorando roguei às borboletas que no alpendre ficassem, que não mais parasitassem dentro de mim, que me deixassem também eu largar o casulo e metamorfosear-me em borboleta, que aliás não sei ser. De borboletas pouco entendo, já de casulos e metamorfoses podia escrever dias a fio sem me faltar o argumento, tão bem que conheço as mecânicas que os norteiam.


A dor quando vive dentro de nós, traça-nos estes caminhos onde não sabemos mais ser dóceis animais. Nem borboletas, nem unicórnios, nem aves primaveris, nem outros que tais. Passamos a ser bestiais feras difíceis de domar, felinos de garras assanhadas, vorazes por fora, feridos por dentro. Aquele que souber amansar o feroz instinto da sobrevivência e sarar os golpes que por tanto tempo sangraram, terá à sua espera o mais perfeito ser que se poderia esperar encontrar nesse misterioso cruzamento entre as garras e as asas, entre os altos voos e as caçadas nocturnas. E de escoriações e de lágrimas não mais se ouvirá falar, senão de risos distribuídos à força desse amor violento, sagaz e tão desejado.

sábado, 21 de dezembro de 2013



As pequenas peças do isqueiro, apertadas umas contra as outras, esgrimem o som metálico que antecipa mais um cigarro. Aceso o vício, oiço o fumo percorrer o caminho que o separa entre os lábios e as paredes dos pulmões, para ser depois expelido corpo fora. Os trejeitos tecidos pela garganta no exercício da sucção e da expulsão ouvem-se à distância. O corpo nu devia ser visível. Mas não é, nunca o foi, nem nunca o há-de ser. Só os sons do fumo acima abaixo acima abaixo são evidência de uma presença mais passageira que o tempo que tentamos agarrar e sempre nos foge. Assim te vestiste de tempo, fugaz e esquivo, e assim me despiste à força das evidências, exposta, despojada, vulnerável. 

A noite que hoje começa é outra. E nela nem tempo que escapa, nem corpos que não se despem, músicas que não se ouvem, contactos que nunca chegam a tocar. E a individualidade que é afinal tão boa. 


quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Gil Dionísio | photo @ Isaac Pereira 2012


Pego no caleidoscópio para te ver mais de perto. Desfaço-te em mil pedaços que hão-de suster-se por todo um dia e toda uma noite no mais alto recanto do meu imaginário. Acordaste heróico e poético hoje, e do meu peito procuro sem descanso exorcizar-te, expurgar cada pegada que me imprimes, cada pedaço da tua derme que vai ficando suspensa na matéria e no nada. E doem-me tanto, mas tanto os teus olhos. De te olhar vivo num arrepio constante, a tua dor acossada à minha, imberbe e serena, como dor que acaba de sair do ventre ensanguentado que pare esta noite.

Do heroísmo e da poesia de que hoje me deste a beber, extraí o mais delicado néctar, para logo a seguir dele te hidratar também. Ousada, insinuarei também um pé descalço, depois o outro, e hei-de seguir até ti os acordes com que me atrai e submete o violino que ora abraças. 

Não me derrames mais esse olhar. Deixa de ser penumbra e faz-te lua cheia, que dela preciso para me alumiar os caminhos. E este dia e esta noite que ainda temos pela frente serão então por fim nossos, seja para sempre, seja para nunca.

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Não conheço a proibição. E minha própria força me libera, essa vida plena que se me transborda. E nada planejo no meu trabalho intuitivo de viver: trabalho com o indireto, o informal e o imprevisto.

Clarice Lispector, in Água Viva



Sei de cor os dias todos, ou quase. O da água, o do gás, o da luz e da internet, da renda, do IMI, do imposto automóvel e dos seguros todos. Raramente sou apanhada na curva, aprendi a ser assim para ver se ia caindo do cavalo menos vezes, como chegou a acontecer umas quantas vezes. Sou matemática, calculista, arrumada no que aos aspectos práticos da vida diz respeito.

Mas quando anoitece, o caso muda de figura. O caos atrai-me, a imprevisibilidade do ser humano tem-me amarrada a olhar para ela como quem antevê um tornado, mas não corre a esconder-se no abrigo. Gosto de me sentir sacudida nas minhas crenças e nos meus preceitos, desafiada pela aleatoriedade que os acontecimentos assumem, aturdida nos caminhos que se vão proporcionando – descalça na maioria das vezes. Porque se durante o dia procuro não me sujeitar ao desconhecido, a noite entrega-me à fúria dos elementos, à impetuosidade carnavalesca que as trevas sempre carregam consigo. 

domingo, 15 de dezembro de 2013



Almiscarada fusão de terra, açúcar mascavado, chuva. Deslizo a caneta pela tua pele, numa esperança vã de marcar o caminho para essa fragrância que me tem refém das manhãs, das tardes, das noites. Prepotência sensorial, essa dependência olfactiva que pesa mais que a invasão do toque, que a pendência do sabor, que a força das palavras, que a intensidade dos olhares. Tudo se resume e encontra nesse erotismo disfarçado de sei lá o quê, de folhas caídas no Outono, de bambus abandonados em cantos de salas, da austeridade dos afectos, das rixas entre o ir e o ficar. Escapo-te como água por entre os dedos, e tu ingénua julgas-te rainha e senhora dos rios e dos mares, que podes afundar embarcações ou resgatá-las ao fundo do mar. Mas não podes. Julgas que podes, mas não sabes que não podes. O teu único poder, é este de me deixares entranhados na palma das mãos esses odores que não se deixam vencer por loções, nem por águas, nem por outras fragrâncias. Valha-nos isso, pois que no instante em que aproximo a mão ao nariz, de novo viajo e me velo aos imperativos do prazer.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013



Subo a Almirante sempre na mesma velocidade. Tenho os sentidos entorpecidos, o corpo violentamente abusado pela dor, as mágoas que foram atiradas ao esquecimento fervilham agora mais do que nunca. Pouco uso dou às dezoito velocidades que a bicicleta me proporciona. Uma velocidade só, sempre a mesma, ainda que os joelhos reclamem, o objectivo é chegar ao destino, com ou sem esforços que seriam desnecessários. Ignoro a quebra de tensão que o corpo me ameaça, desprezo o vómito que se assoma à garganta a cada segundo, e sigo de cabeça erguida, perdida, garganta seca, tanto por gritar e por dizer e por sentir e por doer. Sinto-me tomar de assalto a avenida com uma obstinação que nunca me reconheci. Mais um momento de viragem, em que o peso inteiro do passado me é despejado em cima, deixando claro como água o que tive a mais, mas acima de tudo, o que tive de menos. E de menos não se constroem caminhos. De menos se fragilizam egos, de menos se confundem personalidades, de menos se tinge de cinzento a identidade perdida  no meio de tantas batalhas, tantos afectos distorcidos, tantos amores mal vividos, mal interpretados, mal aproveitados, mal entendidos. Ter criado para mim própria um paradigma de bases tão frágeis não me preparou de todo para aquela que será provavelmente a maior crise de identidade que já atravessei - e que antevi tantas vezes ao longo dos anos. Só não pensei que fosse ser tão crua, física, dolorosa. Perceber quem sou é difícil, e perceber quem quero ser... ainda mais. Mas de uma coisa estou certa: do meu vocabulário, quero retirar o menos, e incluir o mais, MUITO MAIS. Porque como a borboleta luta por sair do casulo, assim estou eu, a deixar uma mórbida cápsula onde me guardei até hoje. HOJE. E só até hoje. Porque amanhã hei-de erguer-me viva e inteira, como se pela primeira vez abrisse ao mundo os olhos.

E tudo vai ser melhor.


Vícios? Vários.

Tomar banho de água a escaldar, até a pele não aguentar mais. Dançar de forma ridícula em cuecas, como jamais seria capaz de fazer em público. Fumar um cigarro quando dispara a ansiedade. Esperar parada na casa de banho que a água do banho se evapore do corpo sem ter que a secar com a toalha. Sentir o frio apoderar-se dos membros por puro masoquismo, na esperança de que este tolhe todas as outras sensações que não quero sentir. Chegar antes da hora a todo o lado. Escrever o que me apetece sem antever consequências. Misturar pessoas de diferentes espectros e observar a inobservância da desconfiança com que invariavelmente tiram medidas mutuamente. Colocar-me em situações das quais podem resultar catástrofes e matutar dias a fio nas possíveis consequências. Comprar sapatos baratos, mesmo sabendo que não vão durar mais do que uma estação, só porque são bonitos. Dormir com um saco de água quente, mesmo sendo a coisa menos sexy do planeta. Exigir demasiado dos outros. Corrigir o português a tudo o que leio. Correr atrás daquilo em que acredito.


Correr atrás daquilo em que acredito?

domingo, 8 de dezembro de 2013

Pronto, pensei, já fomos. Voluntariamente lançados à boca do lobo, que nem se esconde numa toca nem se camufla a olhares indesejados. O lobo ali exposto, visível, de frente à presa que se lhe oferece sem cerimónias nem rituais. Predador, presa, predador, presa. Um vence, o outro sai vencido. O corpo derrotado, destronado na batalha pela superioridade numérica. Dois é melhor que um. Mas se um vence, e não luta nem disputa mais territórios, o outro sai de cabeça baixa, descabelado e ferido, escalpe exposto, a imagem mais fiel que um perdedor pode ter. 


sexta-feira, 6 de dezembro de 2013


Agruras não rima com ternuras. 

E carícias não rima com malícias. 

(Mas rima com delícias, e logo me derreto)

As agruras atiram ao chão, as ternuras ao colchão. 

E se nas carícias vive paixão, das malícias não vem 


senão... Hum.




quarta-feira, 4 de dezembro de 2013



A pouca luz que o vidro da janela deixa passar não deixa adivinhar mais do que uma insinuação do teu desenho. Na parede descubro a projecção da tua sombra, caminho curvilíneo de perdição e viagens sem regresso, onde me deixo ficar suspenso do teu imperativo. Deslizas suave um dedo à boca, entre cortando-o ora à pele, ora à linha insinuante que (in)define os teus lábios. 

Sabe a fumos e a licores, a tua boca. 

Dela bebo vagaroso, perdido na imensidão de sabores e memórias que me traz o gosto da tua boca, pecaminosa e implacável, suavemente perpétua. Insinua-la uma vez mais, como quem finge não saber estar debaixo do olhar de outro. Sabes bem que estou aqui e que te observo, e nem a janela  aberta para a rua ameaça de timidez o teu corpo nu, que tão bem ostentas exibas desfilas como quem não teme o mundo ou a vida.

Provoca-me, sabes que sou oxigenado a fragrância e a luxúria, entrega-te mais uma vez e não feches a janela, deixa-me percorrer-te à sombra da luz que anoitece lá fora.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Lisboa|Sevilha|Amsterdão|Londres|Porto

photo @ Telmo Rocha Silva | Londres 2013

Cidades diferentes.

Os mesmos sentimentos.

Cada rua que confirma um beijo, cada praça que traz de volta uma foto, cada parede que enche de amor o visível, cada palavra que remete para o sentimento que não desaparece. Por muitos caminhos que palmilhe pelas cidades a que me levo, vejo e revejo em cada recanto o sofrer do que já não é, a angustia do que fica por ser. 

Fujo das ruas, das praças, das paredes, das palavras, sem nunca consigo fugir do óbvio. Porque o objecto da minha fuga se tatuou de indelével nas artérias do meu fustigado coração, e cérebro algum inventou ainda um mecanismo dissuasor que permita desmembrar estas tintas em que se pinta o amor. 
Nas cidades não vive a tua memória, senão dentro de mim. E por mais que as calcorreie, é de dentro que sempre se faz o caminho que me leva até aí, onde estás, uma e outra vez. Porque não és a cidade que me rodeia, mas um continente inteiro que (ainda) vive dentro de mim.

O amor, à exaustão o amor.