O amor é isso mesmo, meu caro Kafka. Tu é que andas nas nuvens e experimentas todos esses sentimentos maravilhosos, do mesmo modo que só tu é que desces ao abismo mais profundo da angústia. E o teu corpo e a tua alma têm de suportar. Estás entregue a ti próprio.
Haruki Murakami in Kafka à Beira Mar
São ainda poucos e dormentes os minutos que passam das sete na Figueira. Uma ou outra carrinha abastecem o
mercado, enquanto pombos e gaivotas disputam lugares privilegiados no terraço
do Hotel Mundial. Um homem de idade avançada senta-se na paragem vestido de
colete fluorescente, impregnando o ar do álcool que acabou de beber, tal é a
intensidade do cheiro que oferece a quem por ali espera que algum autocarro se
digne a passar. As nuvens cinzam o dia de um exacerbado dramatismo, quando não
passa de uma qualquer sexta-feira onde provavelmente nada de extraordinário vai
acontecer na vida das pessoas que por ali se amontoam. No painel amarelo coçado
lê-se que mais dez longos minutos separam os passageiros da chegada do
malfadado transporte, pois que é o tempo que falta para que algum autocarro se
digne a passar.
A senhora dos seus setenta anos sentada
a meu lado tem um doce cheiro a sabonete que me faz lembrar da minha avó –
provavelmente também usa Feno, como a minha avó usava. Imbuída de uma bizarra
nostalgia trazida pelo cheiro daquela senhora, sem dar por ela há uma lágrima
que em carregando uma imensa saudade de outros tempos, aterra feroz na blusa de
algodão que trago nesse dia. Não me apercebi dessa súbita melancolia, tampouco
que chorara, até que sinto uma mão firme segurar-me o braço, enquanto me dizia
num tom doce
Não chore menina, que não vale a pena. Eu chorei muito, sabe. Mais do
que se pensa que um corpo frágil como o meu poderia aguentar. Mas chorei,
aguentei, e aqui continuo. E sabe o que retiro daí?
Não, disse-lhe eu, ainda surpreendida com tão vespertina e
inesperada abordagem.
Que andamos cá tempo demais para aquilo que
sofremos. Esta vida tem mais coisas más que boas, e se às más as choramos
todas, já as boas nem sempre valorizamos nem lhes damos o devido apreço. Cedo
aprendi que uma vida feliz e sem percalços é privilégio de uma minoria, onde
infelizmente não me tocou caber. Por isso lhe digo menina, não chore que não
vale a pena. Eu do tanto que chorei, pouco me aliviou, de nada me serviu tanta
lágrima, tanta dor, tanta miséria e tanto comer do pão que o diabo amassou.
Acabei sozinha, mas ao menos não acabei triste. E sabe porquê? Porque deixei de
me permitir sentir. A tristeza era tanta, que escolhi deixar de lhe dar
lugar. Hoje palpo a solidão que me rodeia como se de algo físico se tratasse,
tal é o tamanho do monstro. Mas ao menos não choro mais. Vá por mim, menina, não
chore que não vale a pena.
e sem me deixar tempo de processar, agradecer ou sequer comentar o que acabara de me transmitir, rematou logo muito despachada, em total contradição com o tom das suas palavras
Olhe, e já lá vem o
autocarro. Sacana, sempre atrasado.
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