segunda-feira, 28 de julho de 2014

conselho



O amor é isso mesmo, meu caro Kafka. Tu é que andas nas nuvens e experimentas todos esses sentimentos maravilhosos, do mesmo modo que só tu é que desces ao abismo mais profundo da angústia. E o teu corpo e a tua alma têm de suportar. Estás entregue a ti próprio.
Haruki Murakami in Kafka à Beira Mar

São ainda poucos e dormentes os minutos que passam das sete na Figueira. Uma ou outra carrinha abastecem o mercado, enquanto pombos e gaivotas disputam lugares privilegiados no terraço do Hotel Mundial. Um homem de idade avançada senta-se na paragem vestido de colete fluorescente, impregnando o ar do álcool que acabou de beber, tal é a intensidade do cheiro que oferece a quem por ali espera que algum autocarro se digne a passar. As nuvens cinzam o dia de um exacerbado dramatismo, quando não passa de uma qualquer sexta-feira onde provavelmente nada de extraordinário vai acontecer na vida das pessoas que por ali se amontoam. No painel amarelo coçado lê-se que mais dez longos minutos separam os passageiros da chegada do malfadado transporte, pois que é o tempo que falta para que algum autocarro se digne a passar.

A senhora dos seus setenta anos sentada a meu lado tem um doce cheiro a sabonete que me faz lembrar da minha avó – provavelmente também usa Feno, como a minha avó usava. Imbuída de uma bizarra nostalgia trazida pelo cheiro daquela senhora, sem dar por ela há uma lágrima que em carregando uma imensa saudade de outros tempos, aterra feroz na blusa de algodão que trago nesse dia. Não me apercebi dessa súbita melancolia, tampouco que chorara, até que sinto uma mão firme segurar-me o braço, enquanto me dizia num tom doce

Não chore menina, que não vale a pena. Eu chorei muito, sabe. Mais do que se pensa que um corpo frágil como o meu poderia aguentar. Mas chorei, aguentei, e aqui continuo. E sabe o que retiro daí?

Não, disse-lhe eu, ainda surpreendida com tão vespertina e inesperada abordagem.   

Que andamos cá tempo demais para aquilo que sofremos. Esta vida tem mais coisas más que boas, e se às más as choramos todas, já as boas nem sempre valorizamos nem lhes damos o devido apreço. Cedo aprendi que uma vida feliz e sem percalços é privilégio de uma minoria, onde infelizmente não me tocou caber. Por isso lhe digo menina, não chore que não vale a pena. Eu do tanto que chorei, pouco me aliviou, de nada me serviu tanta lágrima, tanta dor, tanta miséria e tanto comer do pão que o diabo amassou. Acabei sozinha, mas ao menos não acabei triste. E sabe porquê? Porque deixei de me permitir sentir. A tristeza era tanta, que escolhi deixar de lhe dar lugar. Hoje palpo a solidão que me rodeia como se de algo físico se tratasse, tal é o tamanho do monstro. Mas ao menos não choro mais. Vá por mim, menina, não chore que não vale a pena.

e sem me deixar tempo de processar, agradecer ou sequer comentar o que acabara de me transmitir, rematou logo muito despachada, em total contradição com o tom das suas palavras

Olhe, e já lá vem o autocarro. Sacana, sempre atrasado.

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