quarta-feira, 22 de janeiro de 2014



E eis que sinto que em breve nos separaremos. Minha verdade espantada é que eu sempre estive só de ti e não sabia. Agora sei: sou só. Eu e a minha liberdade que não sei usar. Grande responsabilidade da solidão. Quem não é perdido não conhece a liberdade e não a ama. Quanto a mim, assumo a minha solidão. Que às vezes se extasia como diante de fogos de artifício. Sou só e tenho que viver uma certa glória íntima que na solidão pode se tornar dor. E a dor, silêncio.

Clarice Lispector in Água Viva

A atmosfera empestada de hálitos matinais e cigarros engolidos à pressa por força do frio que lá fora envolve os corpos. Nos vidros condensa-se a respiração pesada daqueles que esta manhã se juntaram a esta viagem que há-de passar o rio, a ponte, os barcos e respectivos contentores. As manhãs revestem-se de acinzentados laivos cinematográficos, os vultos arrastam-se pesarosos, iguais todos os dias, amarrados que estão às dores que carregam debaixo dos casacos das luvas dos cachecóis.

Sofro de os ouvir, condoo-me de os olhar. Esta não é a vida que projectámos, estas não são as viagens que planeámos fazer. O rio, brutalmente silencioso, encara-nos com desdém como quem convida a zarpar, como quem desafia prioridades. Eu respondo-lhe quando calha, já vou, hoje ainda não é o dia, espera. Os outros não sei se o fazem ou se se estremunham sem considerar sequer levantar as amarras e vestirem-se dessas águas que sem vergonha nos desatinam e espicaçam os mais calcados desejos.

Estremunhada também eu desde aquele tal dia. Da varanda, não mais senti um olá secreto que outrora se me estendia, senão uma malfadada aura a ti que porfia em cobrir a minha cidade desde que nela não vivemos mais, e tudo o que nela habita – eu incluída, o meu corpo incluído, a minha alma incluída – qual nevoeiro sebastiano que não há meio de se dissipar. Ouvi em confidência a alguém que cada vez que desse nevoeiro respiro, que cada vez que dessa aura levo para dentro de mim, nela te encontro e que por isso não te consigo tirar de dentro. E que quando esse nevoeiro finalmente desaparecer, da tristeza não ficarão sombras, da ausência não sobrarão mágoas, das saudades vivalma alguma soçobrará mais. Apenas um amor terá ficado por cumprir. Ou não. Mas essa já é outra história, e preciso de ti para a contar.

4 comentários:

  1. Podia dizer que a segunda parte do texto é melhor mas nao é isso que quero dizer.

    Podia não dizer nada mas não é isso que quero fazer.


    Olha, batatas;)

    ResponderEliminar
  2. A tua mãe já não está presente, estás longe dela?

    ResponderEliminar