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Quando um dia começa mal, já consigo prever mais ou menos
onde é que a Lei de Murphy não me vai deixar ficar mal. Hoje não está a ser exceção.
Esta manhã, tomava o café em casa do meu namorado, usava uma camisola branca, e
pensava como seria irónico se uma gota de café me caísse na camisola, visto que
não tinha uma única muda de roupa à mão. Segundos depois lá estava ela, uma
nódoa redondinha de café que validava a minha intuição. Enquanto corri para
tentar remediar o desastre, ocorreu-me que por ter saído disparada da cozinha, o
mais certo era esquecer-me do almoço em casa. Mais uma vez não me enganei, e no
meio da correria para não me atrasar, realmente fiquei sem o que almoçar,
consegui sair atrasada de casa, e ainda ter um bónus no trânsito, que por ter
saído de casa mais tarde, estava infernal. Claro que não podia faltar o
elemento “cliente insatisfeito”. Ainda não são 9h da manhã à hora a que
escrevo, e já uma cliente enfurecida me pediu o livro de reclamações por causa
de um erro de uma máquina de ATM que por segundos lhe ficou indevidamente com
dinheiro. “ISTO É INADMISSÍVEL! EXIGO FALAR COM ALGUÉM RESPONSÁVEL!!” Calma,
minha senhora, tudo tem remédio nesta vida.
Há dez anos atrás, não senti intuição alguma sobre o quanto
a minha vida teria mudado antes sequer de anoitecer. Lembro-me que enquanto
tentava chegar ao Santa Maria para visitar a minha mãe antes de baterem as
seis, de me ter mentalizado que nesse dia não ia poder visitá-la. Vir de
autocarro desde o Museu de Arte Antiga até à Cidade Universitária em plena hora
de ponta não era de todo a mais fácil das tarefas, e às seis já eu tinha que
estar no maravilhoso call center do Montepio onde ganhava uns míseros
quinhentos euros por mês – se é que chegava a tanto! – para ser maltratada por “chefes”
pequenas e infelizes com as vidas que levavam, se naquele dia não atingia
determinado objectivo nas malditas vendas de produtos.
Uma vida de sonho, portanto.
E foi quando me apercebi que o autocarro nunca chegaria a
tempo que peguei no telefone para fazer a primeira chamada difícil daquele dia
5 de Março de 2007. Como não tinha saldo suficiente para ligar para o fixo do
hospital – a falta de saldo era por aquela época um problema crónico, tanto ao nível
de conta bancária, como de saldo no telemóvel – liguei ao meu primo para lhe
pedir que pudesse avisar a minha mãe que eu não a poderia visitar nesse dia. E foi
então que fiquei a saber. A minha mãe sucumbira a meses de hospitalização,
tubos e privações várias. A segunda chamada penosa que fiz nesse dia foi para o
meu irmão, que então contava apenas 17 anos, para lhe dizer que a nossa vida
mudara indelével e irremediavelmente, nunca mais seria a mesma, seríamos só eu
e ele daí para a frente. Tudo, mas tudo mudou.
Desse dia lembro-me de ter corrido para o hospital, de não
ter esperado pelo elevador, de ter galgado as escadas cima até encontrar o
corpo inanimado e ainda quente da minha mãe, e de ter chorado compulsivamente,
enquanto um qualquer enfermeiro espanhol tentava em vão fazer-me sossegar. Nunca
chorei tanto como nesse dia e como nessa noite. Senti um medo do futuro como
nunca julguei ser possível. Uma ansiedade medonha que mal me deixava sentir a
dor da perda, o que vai ser de nós, como vou cuidar de mim, como vou cuidar do
meu irmão? Como é que se vive sem uma mãe que nos aponte o caminho, que nos
diga o que é certo e o que é errado?
Nessa noite, enquanto inundava de lágrimas imparáveis a
minha pequena almofada, nas poucas vezes em que conseguia raciocinar de forma
lúcida, repetia para mim mesma, daqui a dez anos, pensa daqui a dez anos, daqui
a dez anos tudo estará melhor.
Dez anos. Dez anos. Dez anos.
E foi sempre a pensar que o dia de hoje chegaria que bem ou
mal fui vencendo os pequenos e os grandes obstáculos, e até as dificuldades que
pareciam mais inultrapassáveis. Veni, vidi, vici. E este dia finalmente chegou.
Mudámos, adaptámo-nos, e tornamo-nos versões de nós mesmos, melhores ou piores,
não sei, mas inquestionavelmente diferentes. Pois que ninguém sai ileso da
morte tão prematura de um pai ou de uma mãe, especialmente quando aquela é
seguida de exercícios duros de sobrevivência, de desilusões, e de um luto sem
espaço para seguir o seu curso normal.
O tempo arde, mas cura. E os dez anos finalmente passaram, o
dia que lá atrás desejei com tanta força chegou, e nós de cabeça erguida
sobrevivemos, e brindamos a memória da nossa mãe, sempre querida, sempre
saudosa, sempre lembrada.
Um beijo, mãe*
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