quinta-feira, 13 de novembro de 2014

quem é quem


 Não, não quero mais gostar de ninguém porque dói. Não suporto mais nenhuma morte de ninguém que me é caro. Meu mundo é feito de pessoas que são as minhas – e eu não posso perdê-las sem me perder.
Clarice Lispector

Ainda não te digeri bem.

Caíste-me mal como uma cerveja morta em final de noite, que já não aquece nem arrefece, só estorva. Usurpas com doentia mestria a libido alheia, completamente indiferente aos danos colaterais do teu hedonismo. Para quê então essa falsa mansidão com as palavras, para quê fazer das conversas um chá das cinco, quando sabes que o teu propósito é sempre e só o de te servires dos outros a teu bel-prazer ?

Nunca tiveste muito jeito para te desfazeres de coisas velhas. As escovas de dentes já descartadas e esquecidas meses a fio pelos WCs, o pomposo séquito das lâminas usadas e ferrugentas amontoadas umas ao pé das outras, as especiarias caducadas há meses, anos atrás jogadas pela cozinha, o frigorífico, fiel depositário de alimentos decompostos ou em vias de.

Às pessoas fazes o mesmo. Deixa-las habitarem-te indefinidamente, perpetrando memórias que já ninguém quer, procrastinando como quem dança à volta do inevitável. Se pudesse, processava-te em saquinhos de chá enquanto durasses, para te ferver e te beber em vagarosos tragos, até que te esgotasses dentro de mim em sabores de frutos e de flores.

A última vez que fiz o percurso do rio, senti o estranho descompasso do amor desconjuntado que às vezes levo a passear. O coração em arritmias leves, quase inaudíveis, lembrando que a presença do corpo não é senão um luxo que a poucos assiste, quando as almas são inseparáveis, desde sempre e para sempre.


Insistes em bater dentro de mim. Tão mais fácil se fosses só um saquinho de chá.

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