quinta-feira, 26 de dezembro de 2013



Estou me criando. E andar na escuridão completa à procura de nós mesmos é o que fazemos. Dói.
Clarice Lispector in Água Viva

Tive em tempos um alpendre onde me sentava sem pensar para pensar. Ali tomava a primeira refeição do dia, prostrada à imutável beleza do verde, sorvendo apaixonada cada pintalgada sua que calhasse a encher-me de alegria a alma e os sentidos. Ali me sentei muitas vezes para chorar os meus mortos, e me sentei outras tantas para sentir e amar os vivos. Vezes tantas que não as sei contar foram as que ali me encostei com as minhas borboletas. Dias muitos, incontáveis e perpétuos, vivem colados ao mais fundo da minha memória, em que sentia o amor cambalear-se-me embriagado dentro do estômago, bebedeira apaixonada cuja ressaca ainda sinto tolher-me os movimentos. Em me vergar ao viver de uma vida como nunca houvera tido, feliz, doce, plena e transparente, dei por mim enredada em tanto amor, e de tanto amar o amor que sentia amar, em amor me desfiz para não mais me refazer. E desfeita e enfeitada, encetei a mais dura trajectória dos desafectos e das novas afeições.

As borboletas, essas teimam em não levantar voo. Frágeis mas tenazes, agarram-se-me ao estômago com quanta força têm e de lá se recusam a partir, numa maquinal vivência que as mantém reféns de um instinto ao qual não se querem ver presas. A última vez que me sentei no alpendre, de mansinho chorei a perda sofrida enquanto daquele verde me benzia uma última vez, e implorando roguei às borboletas que no alpendre ficassem, que não mais parasitassem dentro de mim, que me deixassem também eu largar o casulo e metamorfosear-me em borboleta, que aliás não sei ser. De borboletas pouco entendo, já de casulos e metamorfoses podia escrever dias a fio sem me faltar o argumento, tão bem que conheço as mecânicas que os norteiam.


A dor quando vive dentro de nós, traça-nos estes caminhos onde não sabemos mais ser dóceis animais. Nem borboletas, nem unicórnios, nem aves primaveris, nem outros que tais. Passamos a ser bestiais feras difíceis de domar, felinos de garras assanhadas, vorazes por fora, feridos por dentro. Aquele que souber amansar o feroz instinto da sobrevivência e sarar os golpes que por tanto tempo sangraram, terá à sua espera o mais perfeito ser que se poderia esperar encontrar nesse misterioso cruzamento entre as garras e as asas, entre os altos voos e as caçadas nocturnas. E de escoriações e de lágrimas não mais se ouvirá falar, senão de risos distribuídos à força desse amor violento, sagaz e tão desejado.

2 comentários:

  1. Enquanto sentirmos as borboletas no estômago, sinal de que nos vamos sempre surpreender, mesmo que (re)conheçamos os afectos e as emoções já experimentadas.
    (Textos fantásticos, os seus)

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