Estou me criando. E
andar na escuridão completa à procura de nós mesmos é o que fazemos. Dói.
Clarice Lispector in
Água Viva
Tive em tempos um alpendre onde
me sentava sem pensar para pensar. Ali tomava a primeira refeição do dia,
prostrada à imutável beleza do verde, sorvendo apaixonada cada pintalgada sua
que calhasse a encher-me de alegria a alma e os sentidos. Ali me sentei muitas
vezes para chorar os meus mortos, e me sentei outras tantas para sentir e amar os
vivos. Vezes tantas que não as sei contar foram as que ali me encostei com as
minhas borboletas. Dias muitos, incontáveis e perpétuos, vivem colados ao mais
fundo da minha memória, em que sentia o amor cambalear-se-me embriagado dentro
do estômago, bebedeira apaixonada cuja ressaca ainda sinto tolher-me os
movimentos. Em me vergar ao viver de uma vida como nunca houvera tido, feliz,
doce, plena e transparente, dei por mim enredada em tanto amor, e de tanto amar
o amor que sentia amar, em amor me desfiz para não mais me refazer. E desfeita e
enfeitada, encetei a mais dura trajectória dos desafectos e das novas afeições.
As borboletas, essas teimam em
não levantar voo. Frágeis mas tenazes, agarram-se-me ao estômago com quanta
força têm e de lá se recusam a partir, numa maquinal vivência que as mantém
reféns de um instinto ao qual não se querem ver presas. A última vez que me
sentei no alpendre, de mansinho chorei a perda sofrida enquanto daquele verde
me benzia uma última vez, e implorando roguei às borboletas que no alpendre ficassem,
que não mais parasitassem dentro de mim, que me deixassem também eu largar o
casulo e metamorfosear-me em borboleta, que aliás não sei ser. De borboletas
pouco entendo, já de casulos e metamorfoses podia escrever dias a fio sem me
faltar o argumento, tão bem que conheço as mecânicas que os norteiam.
A dor quando vive dentro de nós,
traça-nos estes caminhos onde não sabemos mais ser dóceis animais. Nem
borboletas, nem unicórnios, nem aves primaveris, nem outros que tais. Passamos
a ser bestiais feras difíceis de domar, felinos de garras assanhadas, vorazes
por fora, feridos por dentro. Aquele que souber amansar o feroz instinto da
sobrevivência e sarar os golpes que por tanto tempo sangraram, terá à sua
espera o mais perfeito ser que se poderia esperar encontrar nesse misterioso
cruzamento entre as garras e as asas, entre os altos voos e as caçadas
nocturnas. E de escoriações e de lágrimas não mais se ouvirá falar, senão de
risos distribuídos à força desse amor violento, sagaz e tão desejado.
Enquanto sentirmos as borboletas no estômago, sinal de que nos vamos sempre surpreender, mesmo que (re)conheçamos os afectos e as emoções já experimentadas.
ResponderEliminar(Textos fantásticos, os seus)
Muito obrigada! :)
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